Apocalipse: O Anticristo e a “Marca da Besta”

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Apocalipse: O Anticristo e a “Marca da Besta”

É uma realidade no mundo do cinema de que todo filme possui um roteiro, o qual seria simplesmente o caminho pré-determinado que um filme irá seguir, de modo que, quando numa gravação, um ator ou atriz foge do roteiro, ele/ela normalmente terá que regravar a cena, pois quando um roteiro é escrito ele deve ser seguido. Assim, quem possui um roteiro em mãos sabe exatamente o que está por vir. Seria interessante se a vida também possuísse um roteiro, poderíamos prever e até talvez evitar certos problemas.

Muitos cristãos tem a Bíblia Sagrada como uma espécie de roteiro, onde tudo que está ali deve acontecer literalmente. Seria corretíssimo se não fosse o “literalmente”, tal como mencionamos em textos anteriores. As Escrituras são sim a norma de fé para qualquer cristão, no entanto, não podem ser comparadas a um roteiro cósmico que terá em suas páginas cada segundo da história humana categoricamente exposto; a bíblia por exemplo não menciona nada acerca do destino dos dinossauros e de sua relação com o ser humano, e tão pouco menciona quem serão os próximos presidentes do Brasil nos próximos vinte anos. A Bíblia é a Palavra de Deus, o que significa que é a Revelação do plano da Redenção através de Jesus Cristo, e é para nossa salvação e a nossa santificação que ela está aqui, e não para que sejamos agentes controladores da história, pois afinal, como o próprio Jesus disse certa vez aos seus afobados discípulos: “Não lhes compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade.” (Atos 1:7, NVI).

Infelizmente, ao longo dos últimos séculos, os cristãos têm buscado antever o fim dos tempos olhando para o momento presente, suas próprias épocas e contextos individuais – o que aqui lembrarmos ser o método historicista de interpretação. Contudo, o próprio Jesus advertiu que o futuro é algo exclusivo de Deus e que não nos compete saber mais do que o Pai quis nos revelar. Tentar “roteirizar” a escatologia bíblica também é um grave erro, buscar fazer identificações de figuras presentes com figuras e símbolos escatológicos pode ser desastroso e inclusive se tornar um desserviço ao Evangelho e a propagação do mesmo. Por isso é necessário que olhemos as Escrituras não como um roteiro para a nossa satisfação pessoal de coisas futuras, mas sim devemos olhar para elas e enxergar o que o Espírito Santo quis dizer, e não o que nós queremos que ele nos diga.

 

 I. O problema

Uma das figuras mais debatidas na corrente de interpretação historicista é o Anticristo. Essa figura ligada tradicionalmente aos últimos dias reaparece vez ou outra, ou nunca saiu de fato, dos lábios dos cristãos. Na verdade, tratar acerca dessa figura tão temida não é uma prerrogativa dos crentes modernos, tendo já se debatido acerca de tal “personagem” desde os primórdios da Igreja; claramente, dependendo do ponto de vista e da linha escatológica seguida, esse Anticristo irá ter mais de uma abordagem interpretativa.

Nosso objetivo aqui mais uma vez é mostrar, acima de tudo, que a Bíblia não é um livro de vários significados, e sujeita a mil interpretações distintas, e ainda que existam divergências acerca de questões periféricas, toda a cristandade deve estar unida naquilo que é crucial, dogmático.

A escatologia de fato é algo complexo quando olhamos suas várias correntes, mas se todos os crentes concordam que um dia Cristo voltará, buscará sua igreja, a glorificará e iniciará seu reino eterno, então estamos por falar “a mesma língua”, contudo, certas questões tidas como periféricas podem acabar por se tornarem problemáticas e acabam por prejudicar de alguma forma o testemunho da igreja. Duas dessas situações são de notável menção, aqui me refiro a já mencionada figura do Anticristo e por conseguinte a famigerada “marca da Besta”. Quanto a esses assuntos, o que tem se tornado preocupante, sobretudo desde o século passado, é que inúmeros anticristos finais e inúmeras marcas surgiram num espaço de menos de cem anos; assim, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Sadan Hussein e até mesmo o papa João Paulo II foram categorizados como o Anticristo escatológico que irá perseguir os verdadeiros cristãos; e de igual modo, vacinas, cartões de crédito, e mais recentemente o chamado “pix”, foram chamados de “marca da Besta”. Notamos mais uma vez a influência do historicismo escatológico que sempre irá associar profecias apocalípticas com contextos históricos do presente.

Mas qual seria o problema com tais “adivinhações”? Lembramos aqui da fábula do menino e do lobo. Havia um menino que gostava de contar mentiras, e certa vez, ao cuidar dos rebanhos do pai, por várias vezes gritou “O lobo!” “O lobo!”, e toda vez que o pai ia checar não havia lobo nenhum, mas certo dia, o lobo de fato apareceu, e como antes, o garoto gritou para alertar o pai, mas o pai não deu crédito e o lobo devorou o rebanho. A moral dessa história é que mentirosos com o tempo perdem a credibilidade, alarmes falsos que acontecem com constância geram irritação, e em alguns casos tornam-se risórios. Assim são os crentes que veem anticristos e marcas da besta em praticamente qualquer coisa. Veem o que querem ver, e perturbam a muitos, mas na hora da prova real se percebe que estavam errados, o que acaba por tirar o peso da situação real, de modo que quando crentes sérios pregam acerca destas coisas são tomados como loucos ou teóricos da conspiração, e isso justamente por que cristãos equivocados espalharam alarmes falsos, cheios de misticismos, achismos e a mais pura ignorância, fazendo assim como já pontuamos, um desserviço para com o evangelho.

Mas como sempre, para se resolver um problema de interpretação, devemos recorrer às Escrituras, e assim apurar fatos que aparentemente são nebulosos. Assim, num primeiro momento trataremos acerca da figura do Anticristo, e se este é uma pessoa, uma coisa ou se de fato existe, existiu ou existirá. Vejamos então o que a Escritura tem a dizer acerca disso.

 

 II. O Anticristo

O primeiro texto o qual iremos analisar é II Tessalonicenses 2:1-4, este é uma orientação acerca da volta de Cristo Jesus, e Paulo diz que Cristo não retornaria antes que fosse manifestado o “homem do pecado”. O apóstolo assim disse:

 

Irmãos, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e à nossa reunião com ele, rogamos a vocês que não se deixem abalar nem alarmar tão facilmente, quer por profecia, quer por palavra, quer por carta supostamente vinda de nós, como se o dia do Senhor já tivesse chegado. Não deixem que ninguém os engane de modo algum. Antes daquele dia virá a apostasia e, então, será revelado o homem do pecado, o filho da perdição. Este se opõe e se exalta acima de tudo o que se chama Deus ou é objeto de adoração, a ponto de se assentar no santuário de Deus, proclamando que ele mesmo é Deus.

 

Paulo escreveu assim por dois motivos: 1- porque todo cristão deve ter consciência do que acontecerá nos últimos dias e de como será a vinda de Cristo, e foi o próprio Jesus que nos revelou muitas coisas em seu Sermão Escatológico (cf. Mateus 24), o que nada tem a ver com o que muitos cristãos fazem hoje de querer adivinhar coisas que a Escritura nunca revelou, pois onde a bíblia se cala nós devemos nos calar também; 2 – o segundo motivo perpassa por uma situação mais própria da igreja de Tessalônica, pois alguns crentes de lá já estavam achando que Jesus “estava as portas”, ou que já havia retornado, de modo que alguns já haviam até mesmo abandonado seus empregos tendo em vista que o reino eterno já havia “começado”, Paulo então os avisa que antes que Cristo voltasse, seria necessária a aparição do “homem do pecado”, alguém que se colocaria num lugar de adoração, chegando inclusive a se declarar Deus.

Ainda nesse texto, Paulo diz mais duas coisas importantes acerca desse “homem do pecado”; primeiro ele diz que esse tal será morto com o sopro da boca de Cristo e o destruirá “pela manifestação de sua vinda” (v. 8); Paulo ainda diz que “A vinda desse perverso é segundo a ação de Satanás, com todo o poder, com sinais e com maravilhas enganadoras” (v. 9) e que o “mistério da iniquidade” já estaria em ação já naquele tempo. Entendemos com isso que o apóstolo Paulo está dizendo que esse “homem da iniquidade”, o “Anticristo”, será um dos sinais finais e iminentes da volta de Jesus, e que surgirá em carne – pois é um “homem da iniquidade” – e agirá conforme o poder de Satanás, operando inclusive milagres.

O apóstolo João talvez nos dê mais detalhes acerca da natureza do Anticristo, isso tendo em vista que ele trata deste título e o define com mais propriedade, assim nos voltamos para o texto de I João 2:18,19:

 

Filhinhos, esta é a última hora; e, assim como vocês ouviram que o anticristo está vindo, já agora muitos anticristos têm surgido. Por isso sabemos que esta é a última hora. Eles saíram do nosso meio, mas na realidade não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; o fato de terem saído mostra que nenhum deles era dos nossos.

Aqui João nos indica que de fato há um Anticristo, tal como Paulo, mas acrescenta que há também vários “anticristos”, estes outrora membros da igreja, mas que saíram dela e começaram a ensinar falsas doutrinas. Esse texto é melhor entendido se olharmos o capítulo quatro de I João:

 

Amados, não creiam em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo. Vocês podem reconhecer o Espírito de Deus deste modo: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne procede de Deus; mas todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito do anticristo, acerca do qual vocês ouviram que está vindo, e agora já está no mundo. (I João 4:1-3).

 

É curiosa a semelhança entre o que Paulo escreveu e o pensamento de João. Há quem argumente que os apóstolos citados estariam tratando de coisas distintas, no entanto, ambos os textos, ainda que oriundos de contextos específicos, possuem a presença da mesma figura, o “anticristo”. João aborda o termo de forma genérica no sentido de que “anticristo” ou ainda “anticristos”, são aqueles que negam Jesus como salvador assim como sua encarnação – João aqui inclusive poderia estar criticando os primeiros docetistas[1]. O apóstolo João diz categoricamente que todo aquele que se opõe a doutrina da obra de Cristo é um “anticristo”. Paulo por sua vez, aponta que haverá um Anticristo maior que antecederá os últimos dias, e ele mesmo havia dito que o “espírito”, a ação desse anticristo já estava operante, concordando assim com João; o “espírito do Anticristo” assim é o que se manifesta em meio a Igreja através de ensinos enganosos, e de acordo com Paulo, o “Anticristo final”, terá ainda o poder de efetuar milagres reais graças ao poder de Satanás. Dito isso, e conforme aponta George Ladd, podemos concluir desses textos que “o espírito do anticristo se manifesta em todos os lugares, em mestres heréticos, cismáticos, mas que será por fim, nos últimos dias, incorporado em uma única pessoa má” (LADD, 2014:816).

Vemos uma representação desse Anticristo final em Apocalipse 13, também escrito pelo apóstolo João. O texto narra uma besta de muitas cabeças, e que recebeu o poder do dragão e que foi adorada pelos ímpios na terra. Ora, esse texto certamente não pode ser literal, geralmente a literatura escatológica nunca é, mas não significa que possua um significado oculto e impossível de se compreender.

A identidade desse Anticristo final sempre foi de interesse da igreja ao longo da história, mas conforme vimos nos textos de II Tessalonicenses e I João, a atividade desse Anticristo possui uma forte conotação espiritual, ele será um falso profeta, provavelmente oriundo do próprio seio da igreja, e que se afastará dela arrebanhando assim muitos numa grande final apostasia. No entanto, a besta de Apocalipse 13 também possui uma conotação política, e sabemos disso pois é a mesma construção literária encontrada na escatologia do livro do profeta Daniel. No capítulo 7 de Daniel, o profeta vê quatro feras que simbolizariam quatro reinos (cf. Daniel 7: 1 – 28). Estrutura muito similar é encontrada no Apocalipse de João:

 

Vi uma besta que saía do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças, com dez coroas, uma sobre cada chifre, e em cada cabeça um nome de blasfêmia. A besta que vi era semelhante a um leopardo, mas tinha pés como os de urso e boca como a de leão. O dragão deu à besta o seu poder, o seu trono e grande autoridade (…) Foi-lhe dado poder para guerrear contra os santos e vencê-los. Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação. Todos os habitantes da terra adorarão a besta, a saber, todos aqueles que não tiveram seus nomes escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a criação do mundo. (Apocalipse 13: 1-2/ 7-8).

 

Nota-se que que essa figura, essa “besta” terá poder “sobre todo povo, língua e nação”, simbolizando assim um poder político que submeterá a humanidade a influência satânica. De certo modo isso já vem ocorrendo, pois o espírito do anticristo já está presente, mas quando o “homem da iniquidade” se revelar, isso acontecerá com maior intensidade. Então acreditamos ser o Anticristo uma figura ligada a grande apostasia dentro da igreja, e que posteriormente levará sua religião deturpada ao âmbito político e assim exercerá influencia sobre toda a terra.

João Calvino contribuiu para essa questão da seguinte forma: “Paulo, entretanto, não fala de um indivíduo, mas de um reino, que era para ser tomado como possessão de Satanás, para que ele possa se assentar como abominação no meio do templo de Deus – que nós vemos se cumpri no papado” (CALVINO, 2010:327). Para o reformador de Genebra, o papado (não um papa em especial), era o anticristo, um poder religioso que se colocava no lugar de Cristo e se estendia ao poder político. Aqui nos permitimos uma leve discordância com Calvino, pois este via o Anticristo como um sistema unicamente, e aqui defendemos que este é tanto um sistema quanto uma pessoa – sendo tal manifestação física ocorrendo somente nos últimos dias que antecedem a vinda de Cristo, tal como o próprio apóstolo Paulo falou. E o texto de II Tessalonicenses indica a forma de “sequência e demora” de um evento, ou seja, isto não ocorrerá antes que aquilo ocorra (CARRIKER, 2020:51); é necessário que antes da volta de Cristo venha então o Anticristo.

Lembramos também que a posição aqui representada não é um dogma incontestável, pois quando se trata de escatologia há sempre a possibilidade de estarmos equivocados, tal como os discípulos de Jesus que acreditavam que o profeta Elias deveria voltar cumprindo assim literalmente a profecia do profeta Malaquias, contudo, Jesus disse que aquele “Elias” prometido nada mais era do que o já conhecido João Batista. Isso nos ensina mais uma vez a não interpretar de forma literal e de maneira inconsequente os textos escatológicos (embora isso valha para a bíblia inteira). Então, no que diz respeito a escatologia, podemos até ter nossa interpretação, contudo, não devemos nos agarrar a ela de forma irracional e obsessiva.

Quando nos apegamos demais a uma interpretação muito pragmática podemos correr o risco de nos tornarmos arrogantes, e mesmo havendo provas de que estamos errados nós não cedemos. Nisso podemos tratar de nosso último tópico, a tão falada marca da besta, também encontrada em Apocalipse 13, e esta seja talvez uma das mais distorcidas interpretações escatológicas.

 

III. A marca da Besta

Essa tão falada marca não encontrou até hoje entre os estudiosos um lugar de concordância. Se a escatologia como um todo possui várias linhas de entendimento, o caso específico da marca é ainda mais complexo, contudo, o que sempre iremos relembrar aqui é que deve haver cuidado para não fazer associações vãs e assim prejudicar a interpretação e até mesmo a pregação do Apocalipse.

O texto de Apocalipse que traz a referência a marca ainda está no capítulo 13, e está escrito o seguinte:

 

Então vi outra besta que saía da terra, com dois chifres como cordeiro, mas que falava como dragão. Exercia toda a autoridade da primeira besta, em nome dela, e fazia a terra e seus habitantes adorarem a primeira besta, cujo ferimento mortal havia sido curado. E realizava grandes sinais, chegando a fazer descer fogo do céu à terra, à vista dos homens. Por causa dos sinais que lhe foi permitido realizar em nome da primeira besta, ela enganou os habitantes da terra. Ordenou-lhes que fizessem uma imagem em honra da besta que fora ferida pela espada e contudo revivera. Foi-lhe dado poder para dar fôlego à imagem da primeira besta, de modo que ela podia falar e fazer que fossem mortos todos os que se recusassem a adorar a imagem. Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa, para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e seis. (Apocalipse 13:11-18).

 

Observam-se alguns pontos relevantes no texto. Primeiramente, após mencionar a primeira besta, a qual recebeu o poder do dragão, e que tradicionalmente está associada ao Anticristo, o autor diz que surge uma nova besta, esta exercia autoridade em nome da primeira besta, e fazia milagres pelo seu poder; sua principal função aparentemente era fazer com que os povos da terra adorassem a primeira besta, a qual, segundo a carta de Paulo aos Tessalonicenses, iria se declarar Deus. Assim, é correto associar essa segunda besta ao “Falso Profeta”, o qual seria melhor referenciado nos capítulos seguintes, mas que pelas suas atribuições pode ser associado a uma falsa religião que irá ter como centro o “Homem da Iniquidade”, o Anticristo. A primeira besta então lideraria a apostasia, fazendo com que muitos que um dia professaram a fé cristã o seguissem, e ele não estaria sozinho, pois teria um “sacerdote”, a segunda besta, o falso profeta, que nada mais seria do que a doutrina religiosa falsa, que prega a mentira e engana a muitos, sendo embasado ainda em milagres demoníacos.

No capítulo dezesseis de Apocalipse vemos como tal “religião” atuaria:

 

 Então vi saírem da boca do dragão, da boca da besta e da boca do falso profeta três espíritos imundos semelhantes a rãs. São espíritos de demônios que realizam sinais miraculosos; eles vão aos reis de todo o mundo, a fim de reuni-los para a batalha do grande dia do Deus todo-poderoso. (Apocalipse 16:13,14).

 

“Reunir para a batalha” os ímpios, os enganados pela besta, nada mais é do que a consumação da pregação do engano, arregimentando um exército de condenados para o dia do juízo final. É uma religião enganosa, porém crível, pois possui sinais miraculosos, onde a atuação dos demônios é fortemente evidenciada.

Ainda acerca desse falso profeta, é dito que ele irá “marcar” os ímpios, os adoradores da besta. E aqui algumas coisas precisam ser entendidas; o Apocalipse é um livro que deve ser visto sob dois níveis, a saber o nível divino e o nível demoníaco, há primeiramente a ação de Deus, e depois há uma cópia grotesca que Satanás faz de tudo aquilo que Deus já havia realizado. Primeiramente temos o cordeiro que esteve morto e reviveu (1:18), e que contrasta com a besta com “ferimento mortal” (13:3); há ainda três anjos proclamadores de Deus (14:6-11), e em contraste há sua versão demoníaca, os três espíritos imundos em forma de rãs (16:13); e é claro há o selo Deus marcado na testa dos seus eleitos (7:1-8), e a sua contraparte maligna, a marca da besta. A natureza desse selo de Deus nos é revelada pelo apóstolo Paulo quando este escreve aos efésios:

 

Nele, quando vocês ouviram e creram na palavra da verdade, o evangelho que os salvou, vocês foram selados com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança até a redenção daqueles que pertencem a Deus, para o louvor da sua glória. (Efésios 1:13,14).

 

O “selo do Espírito” é o próprio Espírito Santo habitando com os crentes, é a prova de que eles são eleitos de Deus, e mais, este selo é aquilo que verdadeiramente garante a salvação dos crentes.

Assim, a marca da besta, fazendo uma cópia maligna, é a marca, a evidência de perdição dos ímpios, e por isso aqui defenderemos que essa marca é o próprio coração endurecido de quem renunciou a Cristo e ao Evangelho, e isso é evidenciado com blasfêmias, corrupção, e total adequação ao sistema deste mundo, por isso que João diz que ninguém que não tiver a marca não poderá “comprar ou vender”, simbolizando assim que todo aquele que não se adequar ao sistema decaído irá ser perseguido. “De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos.” (II Timóteo 3:12). De certo modo, essa marca já está sendo aplicada na presente era, todo aquele que se recusa vir a Cristo, e o resiste com arrogância, aquele está perfeitamente alinhado ao sistema desse mundo sem o menor vestígio de arrependimento, este está marcado pela besta, e já adora o espírito do anticristo que já atua neste mundo.

Por fim nos resta esclarecer acerca do famoso número ligado à essa marca. Como diz o texto: “Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e seis.” (Ap 13:18). É inegável o pano de fundo judaico e oriental presente em todo o Apocalipse, e nesse caso pode ser que haja mais uma referência ao Oriente Próximo, ainda que o livro tenha sido escrito em grego.

Na cultura babilônica e suméria, por exemplo, o número seis era o número dos deuses, era a conta perfeita e cada divindade estava ligada a um número específico; de modo que deuses como Anu, Enki, Nanna e Shamash estavam ligados ao número sessenta e seus divisores (BAKEL, 2018:21). Isso nos é pertinente porque em certas passagens das cartas de Pedro e no próprio apocalipse de João, a cidade de Roma é chamada de Babilônia (cf. I Pe 5:13/ Ap 17: 1-18). Assim “Babilônia” tornou-se uma espécie de código a fim de se referir a então maior perseguidora de cristãos, ou seja, Roma. Então, associar a marca da besta a um número seria apenas para referenciar o paganismo, a falsa religião e toda a corrupção que o sistema do Anticristo, em completa oposição a Deus trará e já está trazendo à Terra.

Também seria possível a substituição dos números pelas letras, visto que tanto o grego quanto o hebraico não possuíam um sistema numérico, assim A=1, B=2, C=3, etc. “Calcular” o número da besta então talvez significasse substituir os números pelas letras correspondentes (LADD, 2014:138, 139). Contudo, devido a simbologia da marca da besta contrapondo com o selo de Deus, nos parece mais apropriado que esta se refira a aceitação da presente ordem e renuncia ao Cristo Vivo, e que certo pano de fundo oriental foi utilizado por João para codificar suas palavras e assim garantir que o então representante do Anticristo na terra, a saber o Império Romano, não entendesse que aquilo lhes era uma referência direta.

Concluímos então com este entendimento, de que só existem dois lados, os do salvos e dos ímpios, os primeiros recebem o selo de Deus e vivem neste mundo conforme a Palavra do Altíssimo, e os segundos, acatam seus prazeres e vontades, e assim renunciam a Cristo aceitando assim a marca da besta, provando que nunca foram salvos. Sendo assim a perseguição e os conflitos são a maior evidência de que um salvo não está se adequando a este mundo e nem seguindo a falsa religião de prazeres, pois os salvos seguirão unicamente a Cristo e Nele encontraram descanso eterno.

 


Bibliografia

A Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2007.

BAKEL, Tom Van. Numbers exactly indicate gods depicted on cylinder seals. Disponível em http:// fileUsers/ZZZ/Downloads/Numbers_exactly_indicate_gods_depicted_o.pdf, acessado em 20/04/2022.

CARRIKER, C. Timóteo. Paulo, o Apóstolo Apocalíptico: 2 Tessalonicenses 2.6-7. Fides Reformata, 2020, v.7, Nº 1, p. 45-58.

LAAD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2014.

________________. Apocalipse: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2014.

LIMA, Leandro. O Pensamento Escatológico de Calvino. Fides Refornata, 2017, XXII, Nº 2, p. 85-98.

[1] Foram um grupo herético que tiveram predominância no início do século II d.C. Eles pregavam que Jesus não veio em carne, tendo somente uma aparência (dokeo) humana, sendo então totalmente divino.