Artigo: A existência de Deus não criada

Ouça este conteúdo
Getting your Trinity Audio player ready...
Tempo de leitura 7 minutos

A existência de Deus não criada.

O ser de Deus e a sua existência eterna frequentemente são motivos de dúvidas e debates. Pois veja, se Deus é o Criador e a causa primeira de tudo o que existe (Gn 1:1,26; Ex 20:11; Sl 33:6; Rm 1:20; Hb 1:10), poderia também Ele ter sido criado a partir de um determinado momento do tempo e do infinito? Assim como nós fomos criados e então passamos a ser e a existir, esta regra de alguma forma poderia se aplicar a Deus?

E na tentativa de querer responder tais questionamentos, afirmações como esta surgem: “Deus não existe, mas sim que Ele é, pois a sua existência necessitaria de uma criação”. Um argumentação que é lógica, mas que simplesmente peca ao afirmar a não existência de Deus.

Portanto, meu objetivo neste artigo não foi tentar provar a existência de Deus, mas discutir a assertiva acima sobre Deus ser mas não existir. Afirmação que por si só causa estranheza. Procurei deter-me apenas no pensamento de Hilário de Poitiers, Tomás de Aquino e Emil Brunner para este assunto. No final deste artigo, procurei fazer as minhas considerações em poucas palavras.

Reconheço as minhas limitações e obviamente não tenho a pretensão e muito menos a arrogância de querer encerrar neste artigo um assunto riquíssimo e profundo para as nossas mentes finitas.

Ele existe antes do tempo

Hilário, bispo de Poitiers e defensor da fé cristã contra as heresias no século IV, sobre a existência e a eternidade de Deus argumenta que Deus existe antes do tempo:

“A eternidade do Pai […] transcende lugares, tempos, forma e tudo quanto o intelecto humano possa conceber. Ele está fora de tudo e em tudo; abrangendo tudo, nada o pode abranger. Não muda, por crescimento ou decréscimo. É invisível, incompreensível, pleno, perfeito, eterno, não recebe de fora o que é e se basta a si mesmo, para assim permanecer. 

Este Pai Ingênito, existindo antes de todo tempo, de si mesmo gerou o Filho, não a partir de alguma matéria preexistente, pois tudo existe por meio do Filho, não do nada, porque gerou o Filho de si mesmo, não por um parto, porque em Deus nada é sujeito a mudança nem é vazio, não como uma parte de si, dividida, partida, ou estendida, porque Deus é impassível e incorpóreo e estas coisas pertencem à paixão e à carne, e, segundo o Apóstolo, em Cristo habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Cl 2,9). Gerou o Unigênito, de modo incompreensível e inenarrável, antes de todos os tempos e séculos, daquilo que em si era ingênito, dando-lhe, pelo amor e poder do nascimento, tudo o que Deus é. Vindo do Pai ingênito, perfeito e eterno, o Filho é unigênito, perfeito e eterno. Tudo o que é dele, segundo o corpo que assumiu, é consequência da sua benevolência, para nossa salvação. 

Sendo invisível, incorpóreo e incompreensível, já que gerado por Deus, recebeu em sai nossa humilde matéria, para permitir à nossa fraqueza compreendê-lo, senti-lo e enxergá-lo, por condescender com nossa debilidade, mas sem perder aquilo que era”.[1] (Poitiers 2005)

Causa eficiente primeira

Tomás de Aquino, uma das principais personalidades da filosofia e teologia medieval, e que influenciou profundamente o pensamento ocidental, contra alguns argumentos sobre a existência de Deus, disse que Deus é a causa eficiente primeira:

O quarto discute-se assim. – Parece que em Deus não se identificam a essência e a existência.

1. – Pois, se assim não fosse, nada se poderia acrescentar ao ser divino. Ora, o ser que não é susceptível de nenhuma adição é o ser em geral, que se predica de todos; e, portanto Deus seria tal ser de todos predicado. Ora; isto é falso, segundo aquilo da Escritura (Sb 14,21): Deram às pedras e ao pau um nome incomunicável. Logo, a existência de Deus não é idêntica à sua essência.

2. Demais. – Como já se disse, podemos saber se Deus existe, mas não, o que é. Logo, não se identificam a existência de Deus e a sua essência, quilidade ou natureza. Mas em contrário, diz Hilário: A existência não é um acidente, em Deus, mas verdade subsistente. Logo, o que subsiste em Deus é a sua existência.

SOLUÇÃO. – Deus é, não somente, mas também a sua existência, o que se pode provar de muitos modos.

Primeiro, porque tudo o que existe num ente, sem lhe constituir a essência, deve ser causado pelos princípios desta, como acidentes próprios resultantes da espécie. Assim, a faculdade de rir resulta do ser humano e é causado por algum ser exterior: assim, o calor da água é causado pelo fogo. Por onde, sendo a existência mesma do ente diferente da sua essência, é necessário seja essa existência causada por algum ser exterior, ou pelos princípios essenciais do referido ente. Ora, é impossível seja ela causada somente pelos princípios essenciais deste, pois, nenhum ente de existência causada é suficiente para ser causa da sua própria existência. Portanto e necessariamente, o ente cuja existência difere essência, há de ter aquela causada por outro ser. Mas, isto não se pode dizer de Deus, pois, já provamos ser ele a causa eficiente primeira. Logo, é impossível que, em Deus, a existência seja diferente da essência. 

Segundo, porque a existência é a atualidade de toda forma ou natureza; assim, a bondade ou a humanidade não são atuais senão quando as supomos existentes. Necessariamente, pois, a existência está para a essência. Da qual difere, como o ato para a potência. Ora, Deus nada tendo de potencial, como demonstramos, resulta que a sua essência não difere da sua existência e, portanto, são idênticas.

Terceiro, porque, assim como o que tem fogo, é ígneo por participação, assim também o que existe, sem ser a existência, existe por participação. Ora, como já estabelecemos, Deus é a sua essência. Se, portanto, não for a sua existência, será ser por participação e não, por essência. Logo, não será o ser primeiro, o que é absurdo. Por consequência, Deus é a sua existência e não somente, a sua essência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A expressão – ser que não é susceptível de nenhuma adição – pode ser entendida em duplo sentido. Ou porque é tal que, por natureza, não se lhe pode adicionar nada, como se dá com o animal irracional, que, por natureza, não pode ter razão; ou porque a sua essência não comporta nenhuma adição, como é o caso do animal em geral, que, por essência, sendo desprovido de razão, não a comporta, sem que, por outro lado essa essência exija que seja privado dela.

Ora, no primeiro sentido é o ser divino que não é susceptível de adição; e no segundo, o ser em geral.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O vocábulo ser é susceptível de duplo sentido. Ora significa o ato de existir; ora a composição proporcional, que o espírito descobre quando une predicado ao sujeito. Na primeira acepção, não podemos conhecer a existência de Deus bem sua essência, mas só na segunda. Pois, sabemos que a proporção que formamos sobre Deus, quando dizemos – Deus existe – é verdadeira; e isto sabemos pelos efeitos de Deus, como já dissemos”.[2] (Aquino 2016)

Deus acima do tempo

Para Emil Brunner, um dos maiores teólogos do século XX também argumentou que Deus está acima do tempo:

Na esfera da revelação cristã a ideia da eternidade é inteiramente diferente. Ela só pode ser entendida a partir da declaração de que o Tempo foi criado. Porque o Tempo foi criado, não é negativo, mas é positivo, como toda Criação divina. O temporal como tal não é pretendido ser considerado negativamente: a visão negativa só se aplica àquele “tempo” que foi alterado pela morte e pelo pecado; assim como não consideramos a criação como tal, de um ponto de vista negativo, mas é apenas o universo criado que foi pervertido negativamente. Foi a Origem platônica quem se deparou com a ideia de conceber o Tempo como produto da Queda, como foi ela, também, quem identificou o estado corpóreo da criatura sob a mesma negação. Este modo de pensar não está de acordo com a compreensão bíblica da revelação, onde o Tempo é concebido como o Temporal, que é um fenômeno da criação, e assim pertence ao universo criado. A atitude de Deus com o Tempo e a origem não é negativo, mas positivo. Deus dá o Tempo. Ele postula, ou “lança” o tempo a partir de Si mesmo. Ele deseja que o Tempo exista; Ele deseja que “se torne” criatura […]

Sua Eternidade, então, é algo totalmente diferente da infinitude:

É um soberano domínio sobre o Tempo e sobre a esfera temporal, a liberdade dAquele que cria e nos dá o Tempo. Como para o Criador, as limitações e as leis do mundo criado não limitam-no, porque é Ele quem as situa e as cria, assim também para Ele os obstáculos do temporal – a separação em passado, presente e futuro – não existem. Deus inclui e compreende o Tempo em Sua Presença Ele não o elimina, mas preenche-o. O Ser de Deus não é infinito; mas é pleno de tempo, cumprimento do tempo […] 

Não existe expressão melhor para esta verdade do que a do salmista: “Pois mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem que se foi e como a vigília da noite”. Todas as declarações a respeito da Natureza eterna de Deus levam inevitavelmente à ideia platônica da infinitude. A questão do temporal ou do não-temporal não pode afetar a Natureza divina. O Máximo que poderíamos dizer seria falar de Deus com acima do tempo – não era isso que a expressão sugere numa conexão com a ideia de infinitude. Simplesmente nos restringimos dizendo que a ideia de eternidade denota a soberania de Deus sobre o Tempo que Ele criou. Nós então permaneceremos fieis à linha de pensamento bíblico, que combina a ideia da liberdade de Deus sobre o Tempo com aquela de Sua entrada no Tempo, com combina a ideia de Onipotência – como a soberania de Deus sobre o mundo que Ele criou – com aquela de Sua liberdade, e ao mesmo tempo de Sua livre auto-limitação”.[3] (Brunner 2004)

Conclusão e considerações finais

Tanto para Hilário, como para Aquino e Brunner, Deus não está limitado no espaço tempo. Pois Ele está acima das leis que servem apenas para o homem mortal e finito em seu ser. Ele não está no tempo, mas Ele dá o tempo. Deus não serve a existência, Ele é a existência. Sua eterna existência demonstra a sua soberania sobre o tempo e o infinito.

Por fim, esta declaração acerta ao dizer que Deus é, pois de fato, Deus é (Ex 3:14), mas ao querer afirmar que “Deus não existe” mas que Ele apenas “é”, erra o alvo, pois a sua natureza, a sua essência e a sua existência, não podem estar separadas uma da outra. Elas são perfeitas em essência e se completam em existência.

A lógica desta afirmação é antagônica entre si, pois se Ele é, necessariamente Ele precisa existir. Como pois o que não é pode existir? Você poderia descrever para alguém ou conceber a ideia, mesmo que fosse no mais profundo dos seus pensamentos, sobre algo que não existe mas é?

Em suma, esta afirmativa contraria tudo o que as Escrituras nos revela sobre a sua existência eterna. Pois se Ele, o Deus Criador, que é a causa primeira de todas as coisas não existe, automaticamente o infinito, o tempo, o universo, o espaço, os anjos, os homens, as partículas químicas, a criação de forma geral, não existem. Na última das hipoteses, seriamos apenas a sombra daquilo o que é mas que não existe.


Notas:

[1] POITIERS, Hilário de. Livro terceiro, p.78.

[2] AQUINO, Tomás de. Art. 4 – Se em Deus se identificam a essência e a existência, pp.44,45.
[3] BRUNNER, Emil. A eternidade, imutabilidade, fidelidade e a justiça de Deus, pp.352,353,356,357.


Bibliografia

Aquino, Tomás de. Suma teológica: Volume 1. Tradução: Alexandre Correia. Campinas, SP: Ecclesiae, 2016.
Brunner, Emil. A Doutrina Cristã de Deus Domática: volume 1. Tradução: Deuber de Souza Calaça. São Paulo: Novo Século, 2004.

Poitiers, Hilário de. Tratado sobre a Santíssima Trindade. Tradução: Cristina Penna de Andrade. São Paulo: Paulus, 2005.