Atitudes para com o nosso Rei-Pastor

Tempo de leitura 8 minutos
arrependimento

Temos refletido biblicamente sobre a visão e vivência dos salmistas a respeito de nosso Rei e Pastor. Agora quero começar a analisar, especialmente à luz dos salmos, algumas atitudes que devem caracterizar a nossa vida como súditos do Reino e ovelhas do Soberano e Bom Pastor.

Pouco gosto por manuais

Quando adquiro um produto que necessita ser instalado, montado ou configurado e considero de simples execução, abro a pacote, dou uma olhada e começo a empreitada. Quando apresenta algum problema na montagem: uma peça que não se encaixa, parafusos sobrando, não liga, etc., recorro ao manual. Creio que essa experiência esdrúxula deva ser quase que exclusivamente minha. Acredito que todas as pessoas de bom senso leem os manuais antes de iniciarem a execução do serviço.

Mal comparando com o meu hábito, parece-me que algumas pessoas fazem o mesmo com a Palavra de Deus: Vivem como se ela não existisse. No entanto, quando os rumos da vida não se sucedem como imaginavam; depois de alguns planos alternativos e apuros que, via de regra agravam o problema, procuram na Palavra algum versículo pequeno de preferência ou, uma revelação esclarecedora bastante prática para ajudá-las.

Contudo, as Escrituras não nos foram dadas com esse propósito. Devemos considerar que o Senhor, nosso Rei e Pastor, nos concedeu a sua Palavra para conhecermos a respeito de seus preceitos e, mais ainda: para que sejamos conduzidos a Jesus Cristo, quem nos conduz definitivamente ao Pai.

Deus deseja que o amemos. Como expressão desse amor, lhe obedeçamos, nos deliciando em seus mandamentos, como nos diz João: “Porque este é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são penosos” (1Jo 5.3) e o próprio Senhor: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14.15).

Quem tem a Deus como Rei e Pastor, desenvolve em sua vida o prazer na Lei de Deus.

Salmo 1

Supõe-se que o salmo primeiro foi escrito depois dos outros 149 ou foi apenas arranjado desse modo para servir de introdução aos mesmos, evidenciando os dois caminhos resultantes da escolha do homem.[1] É um “prefácio”[2] aos demais, estabelecendo já de início a agenda do adorador: Adoração começa pela obediência.[3]

A Lei de Deus em sua perfeição estabelece o caminho a ser seguido. Ela é o padrão de conduta; a norma divina para dirigir a nossa vida.[4] Este salmo reflete a sabedoria em obedecer a Lei de Deus, ao mesmo tempo que pressupõe a soberania de Deus que em sua providência, cuida pessoalmente dos seus, não deixando a história entregue ao acaso.

A chave de entrada no Saltério

Valho-me de uma figura de Jerônimo (c. 347-419) usada no início de suas homilias sobre os Salmos: “o Saltério é como uma mansão que tem apenas uma chave para a entrada principal”.[5] Continua referindo-se ao Salmo 1: “A principal entrada à mansão do Saltério”.[6]

Conforme já dissemos, temos aqui uma reflexão sobre as escolhas humanas com seus acertos (obediência à Palavra de Deus) e equívocos (Rejeição dos ensinamentos de Deus).

O Salmo 1 que prefacia todos os salmos, assim começa:

Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. 2 Antes, o seu prazer (hapets) está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. (Sl 1.1-2).

A “Lei do Senhor” aqui, refere-se a toda Escritura (contextualmente, a todo o Antigo Testamento), não simplesmente à Lei de Moisés.

Agenda do ímpio e agenda do crente

O salmista estabelece o princípio orientador da agenda do ímpio e da agenda do santo. O contraste é feito entre o “conselho dos ímpios” e a “Lei do Senhor” (Sl 1.1-2).

Os incrédulos seguem o conselho dos ímpios, os fiéis se instruem na Lei do Senhor.

Enquanto o homem sem discernimento busca conselho nos ímpios, culminando por assentar-se na companhia dos escarnecedores (Sl 1.1) – possivelmente para convalidar seus interesses e inclinações –, o homem bem-aventurado busca conselho nos mandamentos de Deus (Sl 119.24).

Esta deve ser a nossa prática de vida; nos instruir e nos agradar com os ensinamentos de Deus.

Aguardando a salvação & prazer na Palavra

Pelos ensinamentos, promessas e depoimentos, podemos aprender várias lições concernentes ao nosso comportamento em relação à Palavra.

Enquanto o nosso livramento não se torna sensível a nós, aguardando as promessas de Deus, devemos aprender a nos aprazer na meditação da Palavra: “Suspiro, SENHOR, por tua salvação (yeshuah); a tua lei é todo o meu prazer (shaashuim) (Sl 119.174/Sl 119.143).

Nesse processo, o nosso paladar espiritual vai descobrindo o prazer de se alimentar com a Palavra. O salmista narra a sua vivência: “Com efeito, os teus testemunhos (`edah) (= prescrições) são o meu prazer, são os meus conselheiros (etsah)” (Sl 119.24).

O homem que se compraz na lei do Senhor é bem-aventurado. Parte da bem-aventurança já é o deleite na Palavra de Deus: “Aleluia! Bem-aventurado o homem que teme ao SENHOR e se compraz (hapets) nos seus mandamentos” (Sl 112.1).

Portanto, é preciso que cultivemos o hábito de ler a Palavra e descobrir dentro de um processo de aprendizado, o prazer em cumpri-la. Isso se tornará natural conforme formos assimilando a Palavra em nosso coração: Agrada-me (hapets) fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei” (Sl 40.8).

A Palavra revela muitos pensamentos vãos

Na angústia, muitos dos mitos de nosso pensamento e de nossa imaginação desaparecem. Percebemos então, para nossa tristeza, que muito do que críamos e propalávamos nada tem a dizer de relevante e significativo naquelas circunstâncias; eram pensamentos vãos, vazios de conteúdo e, por isso mesmo, irrelevantes.

Descobrimos então, a grandeza e praticidade da Palavra. No seu conselho encontramos a disciplina educativa de Deus. As suas promessas passam a fazer sentido para nós. É como se um novo mundo se descortinasse à nossa frente.

O salmista suplica pela manifestação da misericórdia de Deus, declarando o seu prazer na lei de Deus: “Baixem sobre mim as tuas misericórdias, para que eu viva; pois na tua lei está o meu prazer (shaashuim) (Sl 119.77).

O salmista descreve a sua experiência; como a sua familiaridade prazerosa com a Palavra de Deus o preservou num momento de grande angústia: “Não fosse a tua lei ter sido o meu prazer (shaashuim), há muito já teria eu perecido na minha angústia” (Sl 119.92). (Vejam-se: Sl 119.16,47, 77,92, 111, 143,174).

Pela Palavra não perecemos na angústia; antes, saímos fortalecidos em nossa fé; mais confiantes no Deus da Palavra e em suas promessas.

A satisfação na Palavra faz com que direcionemos nosso pensamento e coração para ela. Ao invés de nutrirmos mágoas, ressentimentos e desejos de vingança, buscamos na Palavra, que é o nosso prazer, o suprimento para as nossas necessidades e a orientação em nossas decisões.

Quando descobrimos o prazer na Palavra de Deus, passamos mais tempo a lendo e refletindo sobre os seus ensinamentos.

Palavra desejável

Devido à sua pureza, santidade e beleza, a Palavra de Deus é desejável. Ela se torna agradável dentro do propósito de nos conduzir a servir a Deus em santidade. Escreve o salmista: “São mais desejáveis (hamad) (= agradável, preciosa, escolhida, prazerosa) do que ouro, mais do que muito ouro depurado….” (Sl 19.10).

Os nossos desejos revelam as nossas carências ou a falta de consciência do que temos. A questão não está no desejo, mas no que desejamos e sob que circunstâncias.[7]

Quem ama a Deus deseja a sua Palavra, encontrando satisfação em cumpri-la. A lei é para o salmista de valor supremo e incomparável.

Quem deseja satisfazer a Deus tem desejo profundo por buscar o discernimento de sua Palavra fim de vivenciá-la.[8]

Os preceitos de Deus “São mais doces (mathoq) do que o mel e o destilar (= gotejar) dos favos” (Sl 19.10).

No antigo Oriente, o açúcar não era algo abundante.[9] A referência ao mel era unívoca; todos entenderiam.

No Salmo 119, a mesma analogia é feita: “Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca” (Sl 119.103/Pv 16.24).

No banquete de Deus oferecido por meio de sua Palavra, tem até sobremesa; o mel com seu gosto agradabilíssimo e renovador.[10]

Paladar, educação e memória

Paladar tem muito a ver com educação e memória. Em geral gostamos de alimentos que estão associados à nossa educação: fomos criados comendo aquela – considerada agora – iguaria. Isto traz a questão da memória: um alimento, um lugar, um aroma. Com todos eles vêm elementos agregados, por vezes, totalmente desconhecidos ou irrelevantes ao estrangeiro deste universo repleto de símbolos.

Em virtude do nosso pecado, a Palavra de Deus não se mostra apetecível e doce ao nosso paladar.

Precisamos, portanto, educar o nosso paladar espiritual para que aprendamos a nos satisfazer com a Palavra de Deus. Para isso, necessitamos meditar nela, ingeri-la e digeri-la com assiduidade.

Vemos aqui a importância da Educação Cristã que, entre outras coisas, consiste em familiarizar nossos filhos com a Palavra de Deus, seus ensinamentos e prática diária.[11]

Meditar na Palavra, praticá-la, crer nos seus ensinamentos. Somente assim poderemos aprender a nos satisfazer na Lei do Senhor, como é descrito o homem bem-aventurado no Salmo 1: “Antes, o seu prazer (hepets) está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1.2/Sl 119.24).

A Palavra de Deus sempre será doce para aqueles que querem obedecer a Deus confiando nas suas promessas: “Mais me regozijo com o caminho dos teus testemunhos (`eduth) do que com todas as riquezas” (Sl 119.14).

Deleite e obediência

Precisamos nos deleitar na Palavra. Esse deleite se revelará em nossa obediência prazerosa aos seus preceitos. Assim, de fato, o Senhor manifestará de forma concreta o seu pastoreio sobre nós, seu povo.

Isso nos conduz à outra verdade elencada pelo salmista a respeito da prática do homem que é bem-aventurado. Continuaremos no próximo post.

 


[1] Cf. João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1 (Sl 1.1), p. 49; Luís Alonso Schökel; Cecília Carniti, Salmos I: salmos 1-72,  São Paulo: Paulus, 1996, p. 123; Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e comentário,  São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1980, v.  1, (Sl 1.1), p. 62; Eugene H. Merrill, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 560; D. Martyn Lloyd-Jones, A Verdadeira Felicidade: Salmos 1 e 107,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2010, p. 9; Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p.  69; W.S. Plumer, Psalms,  Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1867, 1975 (Reprinted),  p. 27; H.C. Leupold, The Exposition of The Psalms, 6. ed. Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1979, p. 31.  Para uma boa discussão a respeito, ainda que não conclusiva, sugerindo a unicidade primitiva dos dois primeiros salmos, vejam-se: Peter C. Craigie,  Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v.  19), 2004, (Sl 1), p. 58-60; Willem A. VanGemeren,  Psalms. In: Frank E. Gaebelein, ed. ger., The Expositor’s Bible Commentary,  Grand Rapids, Michigan: Zondervan,  1991, v.  5, (Sl 1), p. 53; e, especialmente: Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erica Moore, The Psalms as Christian Worship: A Historical Commentary,  Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 2010, (Sl 1.2), p. 145ss.

[2] Conforme expressão de Spurgeon (C.H. Spurgeon, El Tesoro de David, Barcelona: CLIE., (1989), v.  1, p. 13. Do mesmo modo: Walter Brueggemann, The Psalms the life of Faith, Minneapolis: Fortress Press, 1995, p. 190; A.F. Kirkpatrick, The Book of Psalms, Cambridge: University Press, © 1902, 1951 (Reprinted), p. 1.

[3] Cf. Walter Brueggemann, The Message of the Psalms: a theological commentary,  Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1984, p. 38-39; Walter Brueggemann, The Psalms the life of Faith, Minneapolis: Fortress Press, 1995, p. 190ss.

[4] Veja-se: A.F. Kirkpatrick,  The Book of Psalms, Cambridge: University Press, © 1902, 1951 (Reprinted), p. 3.

[5] Jerome, The Homilies of Saint Jerome, 2. ed. Washington, DC.: The Catholic University of America Press (The Fathers of the Church, v.  48), 1981, v.  1, p. 3.

[6] Jerome, The Homilies of Saint Jerome, v.  1, p. 3.

[7] Veja-se: J. Barton Payne, Hamad: In:  R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, [p. 480-482], p. 481.

[8]“Quando o reino é um tesouro, a submissão é um deleite. Ou, invertendo a ordem, quando a submissão é um deleite, o reino é exaltado como um tesouro” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação,  São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 24).

[9] “Os únicos gêneros alimentícios doces, conhecidos na antiguidade, foram açucares naturais, do tipo frutose produzida, por exemplo, pelas tâmaras, damascos, uvas, ou mel produzido pelas abelhas” (W. White Jr., Mel: In: M.C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 4, p. 207).

[10]A figura da “sobremesa” foi tirada da obra de Francisco L. Schalkwijk, Meditações de um peregrino, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 18.

[11]Calvino comenta com acerto: “Se porventura alguém tenha adquirido desde sua tenra juventude um sólido conhecimento das Escrituras, o mesmo deve considerar tal coisa como uma bênção especial da parte de Deus” (João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.15), p. 261). Em outro momento: “É somente através do ministério da Igreja que Deus gera filhos para si e os educa até que atravessem a adolescência e alcancem a maturidade” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.26), p. 144).

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.