A forma pedagógica-educacional usada por Deus para com o seu povo, é constituída por instrução (por si só preventiva), repreensão e correção. O seu método perpassa toda a Escritura.
Metodologia de Deus
Os olhares humanos assumem focos diferentes conforme as circunstâncias. Nem sempre permanece claro a nós o modo de Deus agir em nossa vida.
Analisando diversos textos que tratam do assunto, podemos ver que o nosso Pastor nos instrui, guia, repreende e disciplina, tendo sempre um alvo em vista dentro do qual outros estão pedagogicamente abrigados.
Ele nos protege com o seu bordão e com o seu cajado. Puxa-nos de volta nos afastando de perigos aos quais nos submetemos, e que por vezes, permanecem imperceptíveis a nós. (Sl 23.4).
Desenvolvamos alguns aspectos nas Escrituras referentes à disciplina de Deus.
Valor da disciplina
No livro de Jó, Elifaz ainda que errando em sua aplicação circunstancial a Jó, exalta corretamente o valor da disciplina divina: “Bem-aventurado é o homem a quem Deus disciplina (yakach) (corrige, reprova); não desprezes, pois, a disciplina (musar) (correção, punição reprovação) do Todo-Poderoso” (Jó 5.17).
O salmista declara algo semelhante, demonstrando que Deus nos disciplina para que sejamos verdadeiros aprendizes da lei, treinados no caminho por Ele proposto para nós: “Bem-aventurado o homem, SENHOR, a quem tu repreendes (yasar) (Admoestar, corrigir, disciplinar, castigar), a quem ensinas (למד) (lamad) a tua lei” (Sl 94.12).
Com certa frequência, a sensação dos servos que passam pela disciplina é de que ela é muito severa. Por outro lado, observamos que por vezes, a disciplina pode ser um meio extraordinário de nos despertar para a realidade da misericórdia de Deus em nossa vida.
O salmista narra a sua dor e, ao mesmo tempo, a experiência da misericórdia de Deus: “O SENHOR me castigou severamente (yasar), mas não me entregou à morte” (Sl 118.18).
Não é estranho aprendermos de modo dialético: Não atentávamos para a bondade de Deus até que Ele em sua soberana graça nos corrige e, então, vemos o descortinar da sua misericórdia que nos tem acompanhado e, por isso, não fomos destruídos. A nossa percepção é um critério diminuto para com as manifestações da misericórdia de Deus.
Por isso, o salmista, consciente de seu pecado, suplica a Deus: “SENHOR, não me repreendas (yakach) na tua ira, nem me castigues (yasar) no teu furor” (Sl 6.1/Sl 38.1).
Natã e Davi
Conhecemos bem a história do adultério de Davi com Bate-Seba e os meios que usou para providenciar a morte de seu marido, Urias, por mãos inimigas (2Sm 11).
A aparente tranquilidade de Davi durante os doze meses que o separam de seus atos pecaminosos e a advertência do profeta Natã soa-me como algo estranho. De alguma forma ele conseguiu equacionar a culpa de seu pecado em sua mente e coração durante aquele período. Entregou-se, como diz Calvino, a uma profunda letargia espiritual.[1]
As nossas racionalizações complementadas por alguns comprimidos podem servir como paliativos durante algum tempo, contudo, não atingem o cerne do problema. Logo, nem de longe têm poder para resolver a questão do pecado e consequentemente da culpa.
Aliás, o sentimento de culpa pode ser uma das bênçãos de Deus para que não nos entreguemos totalmente ao pecado e às suas resistentes amarras. A culpa, nestes casos, é graça! Deus opera desta forma conduzindo-nos pelo Espírito Santo de volta a Ele mesmo. “A ‘verdadeira culpa’ é a que resulta do julgamento divino”, acentua Tournier (1898-1986).[2]
Somente a Palavra de Deus é eficaz no seu propósito de mostrar a nossa infração, tirar a nossa consciência de sua letargia pecaminosa e, nos restaurar à comunhão com Deus.
O profeta Natã enviado por Deus a Davi, conta-lhe uma parábola que dizia haver dois homens numa cidade: um rico e o outro pobre. O rico tinha um grande gado e muitas ovelhas. O pobre tinha apenas uma cordeirinha que tratava como filha. O homem rico, quando recebeu um viajante, querendo oferecer-lhe um banquete, sem nenhum constrangimento tomou a cordeirinha do pobre, a preparou e serviu como prato principal ao homem que havia chegado.
Essa história – que falava tão de perto a Davi, que fora um dedicado pastor de ovelha – foi suficiente para deixá-lo irritadíssimo, declarando ao profeta em forma de juízo: “Tão certo como vive o Senhor, o homem que fez isso deve ser morto. E pela cordeirinha restituirá quatro vezes, porque fez tal cousa e não se compadeceu” (2Sm 12.5-6).
Há algo de surpreendente aqui. Davi, servo de Deus, poeta − cujos escritos foram inspirados −, e rei de Israel; adulterou, tentou esconder seu pecado, envolveu pessoas nisso e, por fim, providenciou com requinte de cruel sagacidade a morte de um leal servo e amigo.
Nada disso o sensibilizou. No entanto, o coração de pastor de ovelha falou-lhe mais alto.
O pecado obscurece a nossa mente
O pecado afeta também o nosso intelecto. Ele é anti-intelectual. Faz-nos perder o discernimento. Ele cria um obstáculo epistemológico-espiritual para com a Palavra de Deus e seus ensinamentos. Tornamo-nos avessos ou, simplesmente impermeáveis à instrução divina.
Isso me faz pensar nas diversas mensagens que comumente recebemos por e-mail e via WhatsApp. Muitas nos sensibilizam com fotos e filmes de gatinhos, cachorrinhos e burrinhos. No entanto, por vezes, permanecemos insensíveis à fome, miséria, infanticídio, indução ao uso de drogas e exploração de todo tipo.
O pecado nos bestializa. A nossa sensibilidade torna-se mal direcionada e nos perdemos diante do que é mais importante.
Voltemos a Davi. Ele está sob forte emoção.
A declaração do juízo feita por Natã
A surpresa maior estava por vir. Natã numa declaração corajosa e dramática diz a Davi: “Tu és o homem. Assim diz o Senhor Deus de Israel” (2Sm 12.7).
Deus o acusa de além de ter adulterado, ter matado a Urias pelas mãos dos Amonitas (2Sm 12.9). Aqui não há casuísmos que pudessem tentar interpretar como “pecados de guerra” ou circunstâncias. Deus vai direto ao ponto.
O pecado, sem arrependimento e confissão, tende a se agravar porque infecciona ainda mais a nossa alma e, comumente tentamos ocultá-lo cometendo outro e outro pecado. Pecado sem arrependimento entra na corrente sanguínea de nossa alma e se manifesta em todos os aspectos de nossa vida. Em síntese, provoca a metástase. Foi isso que Davi fizera.
Tristeza e arrependimento
Mas agora, confrontado com a Palavra por meio da sensível parábola contada por Natã, Davi cai em si. Arrependido, diz com profunda tristeza: “Pequei contra o Senhor” (2Sm 12.13).
Essas breves e sinceras palavras foram suficientes para indicar logo de início o seu foco teológico e o seu arrependimento.
Só lhe resta, portanto, como a todos nós, apelar, como escrevera no Salmo 51, para a “multidão” da misericórdia de Deus (1), para que apague as suas transgressões (1,9), lave a sua iniquidade (2), o purifique do seu pecado (2,7), crie nele um coração puro (10), restituindo-lhe a alegria da salvação (12), sustentando-o com um espírito voluntário (12), pronto para obedecer a Deus.
Pecado como desprezo da Palavra
A essência do pecado de Davi consistiu em desprezar a Deus e a sua Palavra. É nesses termos que Natã fala com Davi:
Por que, pois, desprezaste (hz’B’) (bazah) a palavra do SENHOR, fazendo o que era mal perante ele? A Urias, o heteu, feriste à espada; e a sua mulher tomaste por mulher, depois de o matar com a espada dos filhos de Amom. 10Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste (hz’B’) (bazah) e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para ser tua mulher. (2Sm 12.9-10).[3]
Conforme já citamos, a palavra desprezar tem o sentido de atribuir pouco valor a alguém ou a alguma coisa; subestimar.[4] O que de mais grave podemos cometer nesta vida é desprezar a Deus e à sua Palavra. O pecado consciente tem como ingrediente agravante, o desprezo a Deus e à sua Palavra.[5]
A sentença de Davi e a sentença de Deus
A sentença que Davi indignado apresentara ao profeta Natã se cumpriu parcialmente em sua própria vida, já que o personagem descrito pelo profeta era o rei.
Deus, como sempre, é mais misericordioso do que nós. Não seria diferente em relação a Davi. Por isso, Deus não matou a Davi como este mesmo, inconscientemente havia proposto – quer literalmente ou não − em sua forte emoção: “Tão certo como vive o Senhor, o homem que fez isso deve ser morto. E pela cordeirinha restituirá quatro vezes, porque fez tal cousa e não se compadeceu” (2Sm 12.5-6).
A execução do juízo
Mas, ele perdeu tragicamente quatro de seus filhos: O seu filho com Bate-Seba, Amnon, Absalão e Adonias.
a) Seu filho com Bate-Seba morreu com 7 dias de nascido (2Sm 12.15-18).
b) Seu filho Amnon estuprou a própria irmã, Tamar. O seu suposto amor pela irmã transformou-se em nojo (2Sm 13.1-19).
c) Absalão, outro dos filhos de Davi, planeja a vingança e dois anos depois mata Amnon (2Sm 13.23-29).
d) Davi passa a perseguir a Absalão, que foge, por três anos (2Sm 13.37-39).
e) Davi traz Absalão de volta à Jerusalém (2Sm24), demorando-se mais uns dois anos para que aparentemente se reconciliasse totalmente com o seu filho (2Sm 14.28,33).
f) Absalão seduz o povo, promovendo uma revolta em Jerusalém. Davi foge com os seus soldados leais (2Sm 15.1-18).
g) Absalão para afrontar ainda mais a Davi, coabita diante de todo o povo com as concubinas de Davi que permaneceram em Jerusalém para cuidar do palácio (2Sm 16.22).
h) Joabe, general e conselheiro, desconsiderando a ordem de Davi, mata a Absalão, causando grande tristeza ao rei (2Sm 18.9-33).
i) Adonias, seu filho mais jovem, a quem Davi fez todas as vontades (1Rs 1.6) – ajudado por dois homens de confiança de Davi, o sacerdote Abiatar e o comandante Joabe –, tenta assumir o trono preterindo a Salomão, filho de Davi com Bate-Seba, a quem Davi prometera suceder-lhe. Essa situação não se agravou ainda mais porque Salomão depois de coroado rei, perdoou o seu irmão sob condição de ser-lhe leal (1Rs 1.5-53).
j) Posteriormente, após a morte de Davi, Salomão interpretando o interesse de Adonias em se apossar do trono, ordena a sua morte (1Rs 2.13-25).
A disciplina de Deus é uma manifestação de sua bênção; um testemunho do seu amor para com os seus filhos que caíram em pecado.[6]
No entanto, pode ser extrememanete dura, ainda que permeada por sua misericórdia.
(Continuaremos nos próximo post).
[1] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, p. 421.
[2] Paul Tournier, Culpa e Graça: uma análise do sentimento de culpa e o ensino, São Paulo: ABU., 1985, p. 75.
[3]Ele considerou a Deus e a sua Palavra como algo insignificante: “…. desprezou (בּזה) (bâzâh) Esaú o seu direito de primogenitura” (Gn 25.34). Como também fizera Golias, quando vira o jovem Davi: “Olhando o filisteu e vendo a Davi, o desprezou (בּזה) (bâzâh), porquanto era moço ruivo e de boa aparência” (1Sm 17.42).
[4] Veja-se: Bruce K. Waltke, Baza: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 164.
[5]Quanto à palavra desprezo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Vivendo com integridade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016.
[6]Veja-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 175. “A disciplina é uma evidência segura da filiação do crente e do amor de Deus” (V.R. Edman, Disciplina: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 476).