E. Trabalho, arte e culto
1. “Um hino ressoa ao Senhor!”[1]
É verdade que os mais ínfimos e mais insignificantes objetos, quer nos céus quer na terra, até certo ponto refletem a glória de Deus. – João Calvino.[2]
Este mundo é semelhante a um teatro no qual o Senhor exibe diante de nós um surpreendente espetáculo de sua glória. ‒ João Calvino.[3]
Portanto, por mais que ao homem convenha, com sério propósito, os olhos volver à consideração das obras de Deus, uma vez que foi colocado neste esplendíssimo teatro para que lhes fosse espectador, todavia, para que frua maior proveito, convém-lhe, sobretudo, alçar os ouvidos à Palavra. ‒ João Calvino.[4]
Deus está interessado na criação. Ele não a menospreza. – Francis A. Schaeffer.[5]
Davi extasiado com a Criação, exulta: “Ó Senhor, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade. (…) Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste” (Sl 8.1,3).
O fato bíblico é que o pecado, que consiste na quebra de relacionamento com Deus, trouxe ao ser humano diversas consequências. Entre elas, a perda do discernimento espiritual. Em síntese: a morte! O ser humano perdeu totalmente a capacidade de reconhecer a Deus em seus atos manifestos em toda a Criação, na Palavra e, plenamente revelado em Cristo Jesus.
A quebra dessa comunhão com Deus interferiu diretamente, de forma significativa e decisiva em todas as demais relações, inclusive em nossa maneira de ver e atuar no mundo.
Conforme tratamos, o pecado nos afastou de Deus tornando-nos totalmente indispostos a Ele. Nos alienamos também de nós mesmos, do nosso semelhante e da natureza. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos.
Destruímos todas as pontes e conexões originais. As novas agora, não passam de pinguelas construídas às pressas com o material que nos resta. Elas estarão sempre conectadas a serviço do pecado que agora reina em nós.
A Queda nos desconfigurou como imagem de Deus. Ainda que Deus não a tenha apagado, a perdemos no sentido ético. A nossa vontade, como agente de nosso intelecto, agora é oposta à vontade de Deus. A imagem que refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás.[6]
Vimos também que no Éden só havia um livro: o livro da natureza, todavia, com o pecado humano, a natureza também sofreu as consequências, ficando obscurecida, perdendo parte da sua eloquência primeira em apontar para o seu Criador (Gn 3.17-19)[7] e, como parte do castigo pelo pecado, o homem perdeu o discernimento espiritual para poder ver a glória de Deus manifesta na Criação (Sl 19.1; Rm 1.18-23).
O pecado trouxe consequências objetivas para a natureza e subjetivas para o ser humano; na sua nova maneira de ver a realidade agravada pelo novo e decadente estado na qual ela passou a estar. Em síntese: A Criação já não e mais a mesma. Já não somos mais os mesmos. O que vemos, ainda que estivesse como antes, não veríamos como antes. A nossa visão reflete o nosso novo estado decaído.
A observação de Calvino (1509-1564) parece-nos importante aqui: “Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza”.[8]
Todavia, mesmo a Criação sendo obscurecida pelo pecado humano, continua a revelar aspectos da natureza e do caráter de Deus.[9] Como bem acentuou Calvino:
Assim é que Deus tem estabelecido por toda parte, em todos os lugares, em todas as coisas, suas insígnias e provas, às vezes em brasões de tal nítido entendimento que ninguém pudesse alegar ignorância por não conhecer um tal soberano Senhor que tão amplamente havia exaltado sua magnificência. É quando, em todas as partes do mundo, no céu e na terra, Ele escreveu e praticamente gravou a glória de Seu poder, Sua bondade, sabedoria e eternidade.[10]
A fé cristã fundamenta-se ‒ porque foi por isso que ela se tornou possível ‒ na existência de um Deus transcendente e pessoal (infinito-pessoal) que se revela e se comunica conosco.[11]
Como vimos, sem a comunicação divina não haveria teísmo nem ateísmo; simplesmente jamais chegaríamos ao conceito de Deus, ou à sua negação. Portanto, “a comunicação divina é a base fundamental da fé cristã”, como corretamente resume Lloyd-Jones (1899-1981).[12]
Conforme vimos, Davi ciente de que a Criação não é uma mera extensão da essência de Deus, não se detém na Criação, antes, vai além, reconhecendo a glória de Deus nela.[13]
No Salmo 19, o salmista faz uma referência semelhante de modo mais amplo:
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. 2 Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. 3 Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; 4 no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. (Sl 19.1-4).
Contudo, os homens insensíveis à majestade de Deus, corrompidos em seus pecados, entregaram-se à idolatria:
20Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21 porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22 Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. 24 Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; 25 pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! (Rm 1.20-25).
Os homens em rebelião contra Deus, preferem negá-lo. Como é impossível fazê-lo sem fé – visto que, se crer em Deus envolve fé, o não crer também –, criam seus deuses conforme os seus desejos, um simulacro, uma caricatura do Senhor. Essas criações refletem os sonhos e desejos humanos.
Sproul comenta sobre a idolatria:
Essa é a essência da idolatria: substituir a realidade por uma imitação. Distorcemos a verdade do Senhor e reconfiguramos nosso entendimento acerca dele de acordo com nossas próprias preferências, ficando com um Deus que é tudo, exceto santo.[14]
Do mesmo modo, escreve Poythress:
Tanto nas épocas antigas como hoje, os ídolos se conformam à imaginação de quem os cria. Os ídolos têm, com o verdadeiro Deus, semelhanças o bastante para serem plausíveis, mas diferem no sentido de que nos deixam confortáveis e com a satisfação de manipular os substitutos que construímos.[15]
A Criação nos fala de Deus, de sua majestade e poder. É necessário que tenhamos nossos olhos abertos para contemplar a Deus por intermédio de suas obras.[16] A confiança do salmista passava pela Criação e repousava em Deus: “Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? 2 O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra. 3Ele não permitirá que os teus pés vacilem; não dormitará aquele que te guarda” (Sl 121.1-3).
Mesmo sabendo que as armadilhas estão embaixo, o salmista olha continuamente para cima, porque somente o Senhor o pode livrar: “Os meus olhos se elevam continuamente ao SENHOR, pois ele me tirará os pés do laço (tv,r,) (resheth) (rede)[17]” (Sl 25.15).
O meu socorro não vem dos montes, mas, do Senhor (hw”hoy>) (Yehovah) que criou todas as coisas, inclusive os montes, podendo, se assim o quiser, valer-se destes montes, como parte de sua criação, para me abrigar e proteger. O nosso Deus não é territorial − dos montes, ou dos mares ou das planícies, antes é o Senhor de toda a terra (Sl 24.1).
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Frase do coro do hino, Um Hino ao Senhor, composto por Charles H. Gabriel (1856-1932) e traduzido pelo Rev. Mattathias Gomes dos Santos (1879-1950) em 1931. Entre outros hinários, consta no Novo Cântico: Hinário Presbiteriano, Hino nº 27.
[2] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 65.8), p. 615.
[3] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 63.
[4] João Calvino, As Institutas, I.6.2.
[5] Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 44.
[6] “Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caído no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 67). Do mesmo modo, veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 588ss.
[7]Groningen (1921-2014) acentua: “O Senhor soberano julgou necessário revelar explicitamente a natureza de sua relação pactual com a humanidade. Ele fez isto antes do homem cair em pecado. Depois da queda, isto se tornou ainda mais necessário devido aos efeitos do pecado” (Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 63).
[8]João Calvino, As Institutas, II.1.10.
[9] O mundo foi criado “….para que servisse de palco à glória divina” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 301).
[10]Prefácio de Calvino à tradução do Novo Testamento feita por Pierre Olivétan. In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 15. “Existe diante de nossos olhos, em toda a ordem da natureza, os mais ricos elementos a manifestarem a glória de Deus, mas, visto que somos inquestionavelmente mais poderosamente afetados com o que nós mesmos experimentamos, Davi, neste Salmo, com grande propriedade, expressamente celebra o favor especial que Deus manifesta no interesse da humanidade. Posto que este, de todos os objetos que se acham expostos à nossa contemplação, é o mais nítido espelho no qual podemos contemplar sua glória” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.1), p. 356). Vejam-se também: João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 62-63; Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.7), p. 59-60; (Hb 11.3), p. 300-301.
[11] “Todos os povos ou puxam Deus panteisticamente para baixo, na direção daquilo que é criado, ou o elevam deisticamente, colocando-o infinitamente acima da criatura. Em nenhum dos casos se chega a uma verdadeira comunhão, a uma aliança, a uma religião genuína. No entanto, a Escritura insiste em ambos: Deus é infinitamente grande e condescendentemente bom; Ele é soberano, mas também é Pai; Ele é Criador, mas também é Protótipo. Em uma palavra, Ele é o Deus da aliança” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 580). Veja-se também, 573ss.; v. 3, p. 187-190).
[12]D. Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 24. “O fato de que a teologia existe é devido somente a Deus, à sua autoconsciência, ao seu bom prazer. Mas o meio, o caminho pelo qual o conhecimento de Deus nos alcança é a revelação de Deus, entendida aqui em um sentido completamente geral. Isso está implícito na natureza da revelação” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 212).
[13] Ver também: Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p. 98.
[14]R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 205. Em outro lugar: “A idolatria representa o insulto máximo a Deus. Reduzir Deus ao nível da criatura é despojá-lo de Sua divindade. Isto Lhe é particularmente odioso em face do fato de todos os homens terem recebido suficiente revelação sobre Ele para saber que não é uma criatura” (R.C. Sproul, Razão para crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 39).
[15]Vern S. Poythress, Redimindo a Matemática: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2020, p. 20-21.
[16] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, (Sl 19.1), p. 413-414.
[17]Sl 10.9; 57.6; 140.5.
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