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O bezerro de silício

Libertação do mal não é libertação das incertezas. Mesmo em períodos de paz e fartura, e mesmo com a certeza da providência e do amor de Deus, sentimos o peso do desconhecido todos os dias e, muitas vezes, lutamos sob a carga de seu fardo. Em nossos melhores dias, a fé e a esperança nos sustentam. Em nossos momentos mais sombrios, elas nos abandonam — ou melhor, nós as abandonamos — e ficamos ao sabor dos ventos de mudança.

A luta humana com as incertezas é uma história muito antiga, que é contada e recontada há muitos anos e de muitas maneiras. Ela é parte integrante do relato bíblico do Êxodo: os israelitas foram escravizados pelos egípcios, e Deus designou Moisés para libertá-los. Eles deixaram o Egito para trás, cruzaram o mar Vermelho que foi miraculosamente aberto, e entraram pelo deserto adentro, peregrinando sob a orientação de Deus.

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No Sinai, porém, quando Moisés subiu ao monte para ouvir a voz de Deus, sua ausência prolongada gerou incerteza. O povo começou a ficar impaciente. Então, eles decidiram que um Deus intangível — que não podiam ver nem controlar — não era tão desejável quanto um ídolo tangível e confiável, feito com suas próprias mãos. “Venha, faça-nos um deus que vá à nossa frente”, disseram a Arão, irmão de Moisés (Êxodo 32.1, NASB). Com a ajuda dele, fizeram um bezerro de ouro e começaram a adorá-lo, escolhendo uma certeza cheia de brilho, em vez do Deus que os havia tirado do Egito.

Aqueles de nós que já serviram como pastores ou lideraram estudos bíblicos sabem as perguntas que essa história geralmente suscita: Como puderam rejeitar a Deus, depois que ele os libertou da escravidão? Como puderam esquecer os milagres que tinham acabado de ver?

A lamentável resposta é que eles eram como nós — e nós somos como eles. Esse anseio por certeza faz parte da condição humana. E experimentar as incertezas da vida, que são uma constante em um mundo caído, mesmo para aqueles que seguem a Deus, exige uma dose de fé. Se formos honestos conosco mesmos, reconheceremos que às vezes nossa fé também esmorece.

Podemos realmente acreditar que “o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno”, mas, mesmo assim, pode ser difícil para nós fixarmos os olhos não naquilo que se vê, mas no que não se vê (2Coríntios 4.18). Em momentos de incerteza, nós também nos voltamos para deuses que nossos sentidos possam captar. Temos nossos próprios bezerros de ouro.

Em dezembro de 2024, a OpenAI (empresa que está por trás do ChatGPT) anunciou seu mais novo modelo de fronteira, o o3, sob uma enxurrada de avaliações que variavam de otimismo e admiração até um desconforto alarmante. O lançamento ampliou o debate em torno da ideia de uma Inteligência Artificial Geral (IAG) — um debate que se intensificou ainda mais nos meses seguintes, impulsionado por anúncios adicionais de concorrentes da OpenAI, como a empresa chinesa DeepSeek, que em janeiro lançou seu modelo de raciocínio R1.

Atualmente, a IAG é apenas a ideia hipotética de uma forma poderosa de inteligência artificial capaz de compreender, aprender e executar qualquer tarefa intelectual que um ser humano possa realizar. Mas, para empresas como a OpenAI, a IAG é um objetivo muito real. De fato, a declaração de missão da OpenAI é “garantir que a Inteligência Artificial Geral — sistemas de IA que são geralmente mais inteligentes que os seres humanos — beneficie toda a humanidade”.

Para alguns, a perspectiva da IAG prenuncia uma hecatombe em escala existencial, evocando o medo de cenários como os que são retratados nos filmes O Exterminador do Futuro ou 2001: Uma Odisseia no Espaço, nos quais a IA supera e subjuga a humanidade. Mas outros, como o futurista Ray Kurzweil, em seu livro lançado em 2024, The Singularity Is Nearer (A singularidade está mais próxima), acolhem a IAG com otimismo e fervor religiosos, vislumbrando um futuro utópico em que a IAG erradicará doenças, acabará com a pobreza e se fundirá com os seres humanos, dotando-nos de habilidades sobre-humanas para resolver desafios atualmente insolúveis, entre eles a mortalidade.

Segundo essa visão otimista, a IAG nos tornaria semelhantes a deuses. Entretanto, ambos os extremos têm uma textura quase teológica — uma espécie de escatologia do século 21 — cada qual fundamentado em sua própria espécie de fé.

Suspeito que isso revele algo mais profundo do que a propensão da nossa cultura para pensar no fim dos tempos. Tem a ver com o cerne dos nossos pensamentos e desejos a respeito de Deus (ou de deuses “que vão à nossa frente”). É uma reiteração do ethos que tornou necessário o primeiro mandamento: “Não tenha outros deuses diante de mim” (Êxodo 20.3). Reflete nosso impulso para encontrar (ou para nos apropriar de ou para criar) significado, poder e controle em um mundo que nos parece a cada dia mais imprevisível.

Assim como os filhos de Israel ficaram impacientes demais para esperar por um Deus que estava além do seu controle, nós ainda estamos nos esforçando para criar um deus tangível, por meio de quem possamos nos livrar das incertezas. A esperança da IAG é o nosso bezerro de ouro moderno, criado para nos guiar por entre desafios sociais, científicos e existenciais cada vez mais complexos.

Se isso lhe parece exagero, ouça as próprias palavras dos entusiastas da IAG. Em novembro de 2024, Masayoshi Son (CEO da SoftBank) disse: “A Superinteligência Artificial evoluirá para a Supersabedoria e contribuirá para a felicidade de toda a humanidade”.

Em outubro de 2024, Demis Hassabis (CEO da Google DeepMind) previu que a IAG surgirá dentro de dez anos e, entre outras coisas fantásticas, “curará todas as doenças”. Em janeiro, ele diminuiu essa projeção para cinco anos.

Também em janeiro, Sam Altman (CEO da OpenAI) falou sobre a contribuição de sua empresa para “um futuro glorioso”.

Em fevereiro, logo após o AI Action Summit em Paris, Dario Amodei (CEO da empresa de IA Anthropic) previu que, até “2026 ou 2027”, provavelmente teremos sistemas de IA comparáveis a um “país de gênios em um data center”.

E se havia alguma dúvida sobre as conotações religiosas dessa discussão, [ela se dissipou quando] o presidente francês Emmanuel Macron invocou a reconstrução da catedral de Notre-Dame como símbolo de uma iniciativa para construir o tipo de data center que seria necessário para abrigar a IAG.

Apesar de todos os aparatos tecnológicos, essas expectativas — esperanças — de uma IAG são tudo, exceto uma investigação científica objetiva. Esses comentários me parecem ser a criação de uma nova religião a partir de um impulso ancestral: um bezerro de silício, um deus com poder sobre as incertezas e um deus que os seres humanos podem controlar.

Reconhecer esse movimento pelo que ele é será necessário para colocar a IAG em seu devido lugar. Essa tecnologia pode muito bem beneficiar a humanidade de maneiras incríveis. Recusar-se a aceitá-la com esse cunho religioso não precisa resultar na rejeição total de seus benefícios reais. Se a IAG contribuir para algum tipo de tratamento para erradicar o câncer, eu não rejeitaria esse tratamento por causa de sua origem [ou seja, pelo tratamento vir dela].

Mas maravilhas desse tipo não são a única maneira pela qual uma tecnologia disruptiva paradigmática como essa pode ser usada, e os cristãos estão em uma posição única para chamar a atenção para a realidade mais complexa e, sim, incerta, que temos aqui. Estamos bem preparados para falar sobre a necessidade de fé no Deus imutável que é “o mesmo ontem, hoje e para sempre” (Hebreus 13.8). E estamos em posição de oferecer a única solução verdadeira para as incertezas da vida.

Assim como os israelitas tiveram de aprender que nenhum bezerro de ouro poderia substituir a presença de Deus, também nós devemos reconhecer que mesmo os sistemas de IA mais avançados não podem nos conceder a certeza que tanto almejamos. Nossa identidade, nossa esperança e nosso futuro pertencem, em última análise e somente, a Cristo. O uso correto da tecnologia — evitando essa franca idolatria de alguns dos defensores da IAG que vemos hoje — exige que honremos o Deus que nos liberta da escravidão a todo e qualquer ídolo, seja antigo, seja moderno, e nos convida para uma Canaã onde há genuína liberdade e florescimento.

A. G. Elrod é professor de inglês e ética em IA na Universidade de Ciências Aplicadas HZ, na Holanda. Ele também é pesquisador de doutorado na Universidade Vrije de Amsterdã, onde estuda os vieses dos modelos generativos de IA e as implicações de seu uso para a sociedade, a cultura e a fé.

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  • Cativo à Palavra

    Projeto Missionário Teológico e Pastoral. Para um coração cativo e dedicado ao Senhor.

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