Por mais de 50 anos, o termo grupos de povos não alcançados tem moldado a missiologia evangélica. O conceito, que ganhou força inicialmente na década de 1970, por meio do trabalho do missiólogo americano Ralph Winter, é “provavelmente a inovação de pensamento mais significativa na missiologia do século 20”, segundo o mobilizador de missões Leonard Bartlotti.
O termo oferece uma estrutura convincente e impactante: ir para onde o evangelho ainda não chegou, alcançar aqueles que nunca o ouviram e priorizar povos que não possuam uma igreja local por perto que dê testemunho do evangelho. Muitos, inclusive eu mesmo, foram despertados para um mundo que precisava desesperadamente de mais testemunhos transculturais e para a centralidade e a primazia do chamado global da igreja para missões.
Mas o mundo está sendo rapidamente transformado por fatores como a globalização, a urbanização, a migração e a conectividade digital. Não podemos mais concordar com a ideia de que o termo em questão possua um único significado. Em um ambiente onde a conectividade digital prospera, esse termo parece antiquado. Precisamos recalibrar nossa compreensão do termo grupos de povos não alcançados, reconhecendo seus pontos fortes permanentes lado a lado com suas crescentes limitações, e mantendo diante de nós a urgência do mandato bíblico de levar o evangelho àqueles que tenham pouco ou nenhum testemunho em seu meio.
O fascínio duradouro do conceito de grupos de povos não alcançados reside em parte na sua simplicidade. Em meio a tanta complexidade, confusão e controvérsias no campo acadêmico e aplicado da missiologia global, esta abordagem se destaca pela clareza: faça uma contagem dos povos não alcançados, identifique as necessidades mais urgentes, vá até eles e conclua a tarefa. Cada congregação dispõe de recursos limitados de tempo e dinheiro para se engajar efetivamente com as realidades religiosas globais. Dessa forma, o conceito de grupos de povos não alcançados fala de oportunidades, incentiva a oração e inspira à ação. Ele [o conceito] tem ajudado inúmeros evangélicos a orar, a contribuir e a ir especialmente para os não crentes que residem na “Janela 10/40”, uma região que se estende do Marrocos ao Japão.
No entanto, os problemas surgem quando uma ferramenta útil se torna uma estrutura inquestionável, principalmente se ela dita a alocação de recursos e molda estratégias. Devemos ser honestos quanto às limitações da sua definição original e precisamos reconhecer que algumas das suas premissas intrínsecas sobre povos e lugares estão começando a mostrar sinais de desgaste.
A primeira vez que Winter chamou a atenção dos evangélicos para os grupos de povos não alcançados, ou “povos separados”, no primeiro congresso de Lausanne, em 1974, pouco mais de um terço da população mundial vivia em cidades e cerca de 84 milhões de pessoas viviam fora de seus países de origem. Hoje, porém, massas crescentes de pessoas migram para centros urbanos em expansão. Bem mais da metade da população mundial vive em cidades, e mais de 300 milhões de pessoas vivem como migrantes internacionais espalhados pelo globo.
Nas cidades, culturas se misturam, identidades se transformam e se formam microcomunidades em torno de interesses e visões de mundo semelhantes. À medida que mais pessoas se mudam para centros urbanos cada vez mais parecidos e consomem alimentos e tendências da cultura pop similares, há mais pontos em comum do que jamais houve entre pessoas de diferentes culturas e etnias. Esses contextos urbanos migratórios resistem a uma categorização etnolinguística simplista, e propõem um desafio ao paradigma dos “grupos de povos”.
O termo se torna ainda mais complexo quando consideramos contextos em que existem identidades múltiplas, mistas ou “hifenizadas” [isto é, identidades culturais que são expressas pela união de duas ou mais palavras com hífen, por exemplo: nipo-brasileiro]; casamentos interculturais e hibridização, processo em que “línguas e culturas colidem para dar origem a novas línguas e culturas”, escreveu Minh Ha Nguyen, pesquisador de missões vietnamita, em um ensaio no livro People Vision: Reimagining Mission to Least Reached Peoples [Visão voltada para pessoas: reimaginando a missão para os povos menos alcançados].
A globalização impulsionada pela tecnologia também mudou a forma como entendemos pessoas e lugares. Um jovem de 17 anos na Califórnia, um jovem de 17 anos em Nairóbi e um jovem de 17 anos em Mumbai podem cada vez mais ter em comum hábitos digitais, pontos de referência e formas de expressão cultural. Eles podem sentir que têm entre si uma identidade comum mais forte, por meio de uma língua global como o inglês, do que com um avô ou avó que more a poucos quilômetros de distância deles.
Em situações onde as barreiras linguísticas persistem, o rápido desenvolvimento de ferramentas de tradução por IA significa que já não é mais inimaginável que um discurso sobre cosmovisão que ultrapasse as barreiras linguísticas possa um dia estar ao alcance de todos nós.
Isso não significa que os grupos de povos não importem mais ou que precisemos abandonar o termo grupos de povos não alcançados. Mas significa que o pensamento sobre o conceito dos grupos de povos precisa se adaptar.
Estratégias missionárias que se apegarem rigidamente a categorias de pessoas e lugares que forem fixas e herdadas podem não perceber certos caminhos relacionais e culturais que estão emergindo, pelos quais as pessoas estão chegando à fé. Bilhões de pessoas em todo o mundo agora têm acesso a materiais sobre o Evangelho em seu próprio idioma, por meio de smartphones. Se chamar um grupo de “não alcançado” depender do acesso que ele tem a uma comunicação do Evangelho que seja contextual e linguisticamente apropriada, as atividades dos missionários digitais podem redefinir o conceito de não alcançado.
Será que ouvir as Boas-novas por meio de uma postagem em uma rede social ou de uma ferramenta de inteligência artificial realmente conta como alcançar povos que não foram alcançados e ajudá-los a se engajar com o evangelho? Certamente, alguém que se depara casualmente com uma postagem cristã em uma rede social ou que discute assuntos de fé com um chatbot não deve ser considerado “alcançado”, se comparado com alguém que tem uma conversa presencial, prolongada e sustentada por oração com um crente que fale a sua língua nativa.
Ainda assim, precisamos lidar com os padrões migratórios em constante evolução e com as rápidas mudanças tecnológicas em nosso trabalho de evangelização. Precisamos de uma missiologia mais complexa. Se antes pensar em grupos de povos não alcançados nos dava urgência e clareza, o mundo de hoje exige flexibilidade e imaginação. Oportunidades para evangelizar podem surgir inesperadamente, como, por exemplo, falar de Jesus para um desconhecido com quem estamos jogando videogame ou convidar um amigo estrangeiro para um estudo bíblico virtual com tradução simultânea.
Eclesiastes nos exorta: “Plante de manhã a sua semente e à tarde não fique de braços cruzados, pois você não sabe qual semente crescerá ” (11.6). Somos chamados a compartilhar amplamente as Boas-novas, confiantes de que Deus dará os frutos e certos de que o Senhor da colheita ainda está reunindo pessoas para si. Recalibrar nossa compreensão do conceito de grupos de povos não alcançados não significa diluir nossa paixão pela missão, mas sim aprofundá-la.
Chris Howles serviu no Seminário dos Mártires de Uganda, em Kampala, entre 2011 e 2023 e agora é diretor de treinamento intercultural no Oak Hill College, em Londres.
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