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O Natal perfeito não existe

Toda família tem seus personagens periféricos, que aparecem vez ou outra. Revisite suas lembranças e os verá lá — sem fazer nem dizer muita coisa, sem desempenhar papéis importantes no drama do dia, simplesmente estão lá, em segundo plano.

A minha família parece atrair um tipo específico de personagem periférico: pessoas com quem temos poucos laços íntimos ou que estão afastadas daqueles com quem construíram seus primeiros laços. São um pouco excêntricas — às vezes, poderíamos até dizer que são “um pouco estranhas”. Em resumo, são pessoas solitárias. Trabalharam com meu pai ou encontraram minha tia na igreja de manhã e, de alguma forma, foram acolhidas por nós. A partir daí (talvez contra a própria vontade, quem sabe), foram atraídas para a vida da minha família. E nos acompanhavam. Apareciam nos aniversários, nas festas do Dia da Independência (4 de julho), nas visitas de domingo à tarde e na Ceia da véspera de Natal. Quando revisito minhas memórias, o dia 24 de dezembro, em particular, é onde vejo essas pessoas.

Eu me lembro de ter reclamado sobre isso com meus pais pelo menos uma vez. A não ser que trouxessem presentes, aqueles estranhos na véspera de Natal não contribuíam em nada para conquistar meu pequeno coração ganancioso. Eles nos obrigavam a ter boas maneiras. E nos forçavam a participar daquela rotina tão peculiar entre adultos e crianças, constrangedora, artificial e cheia de conversa fiada. Eles também competiam pela atenção dos meus pais. E mudavam toda a dinâmica da festa.

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Por que não podíamos passar o Natal só entre nós, que éramos da família? Por que, nesta noite em particular, não podíamos simplesmente aproveitar a proximidade calorosa, reconfortante e a eterna piada interna que é uma festa alegre, celebrada em família? Acho que a resposta que eu ouvia era algo como: “Nós recebemos tanto, e os outros têm tão pouco. E é Natal. Ninguém deveria passar o Natal sozinho.”

E eu pensava com os meus botões: Ora, se nós recebemos tanto, por que o pepperoni fatiado na bandeja de frios sempre acaba tão rápido? Mas, como a vida adulta não passa de um longo exercício de admitir que seus pais estavam certos, hoje eu admito isso.

Não que não houvesse verdade nas minhas queixas, por mais insensíveis que fossem. A gente realmente perde algo de precioso e frágil, quando convida estranhos para a nossa casa. Muitas pessoas solitárias são solitárias por um motivo: elas são incapazes de dar e receber como a maioria das pessoas ou relutam em fazê-lo, são amarguradas ou movidas por compulsões alienantes.

E eu apostaria que o presente que lhes oferecíamos era uma bênção ambígua. Já estive nessa situação muitas vezes, longe de casa no Natal, dependendo da generosidade dos amigos para que me incluíssem em seu círculo familiar. A angústia, em certo ponto, faz a dor — de sempre desfrutar por graça daquilo que outros desfrutam por direito — competir com a gratidão. Você anseia pelas pessoas para quem você é prioridade. Seria muito difícil não ter essas pessoas.

A verdade é que há uma ferida embutida na estrutura da hospitalidade — o fato de que, para ser acolhido do lado de dentro, precisamos primeiro estar do lado de fora. Alguém sempre precisa fazer o papel de Ulisses, desolado e suplicante, mesmo que apenas no sentido mais rudimentar e simbólico, como quando vizinhos retribuem uma visita.

Ainda assim, é melhor não passar o Natal sozinho. Nunca recusei um convite para uma ceia. E sou grata por nenhuma das pessoas que convidamos ao longo dos anos jamais ter recusado nosso convite, mesmo que às vezes isso tenha tido um custo que jamais compreenderei completamente. No mínimo, fico feliz que, ainda jovem, essas pessoas tenham acrescentado complexidade à minha agradável véspera de Natal.

Afinal, o que define se uma celebração natalina é agradável ou não? Se você tem ascendência italiana, como muitos dos meus amigos e parentes, a resposta não é apenas pepperoni, mas provavelmente várias espécies diferentes de peixe: lula frita em anéis crocantes com um toque de limão; sardinhas em camadas com pimentões vermelhos em uma tábua de antepastos regada com azeite; pão mergulhado no patê de bacalhau. Para mim, uma agradável véspera de Natal pode ser definida da seguinte maneira: o culto natalino, seguido da decoração da árvore de Natal; a leitura de uma história para a geração mais jovem, que, nessa cena ideal, veio de avião com seus pais para participar da ceia em família; depois, champanhe, acompanhada de pequenos e delicados folhados com prosciutto artesanal, e, por fim, enrolar o tapete para improvisar uma pista de dança.

Em termos puramente materiais, todos temos nossos “Natais agradáveis”, que geralmente vêm na forma de uma lista de coisas a fazer. Precisamos da árvore de Natal perfeita; precisamos comprar uma caixa de espumante; precisamos garantir que as meias das crianças não mofaram enquanto estavam guardadas durante o ano; precisamos fazer o chester, descascar batatas e cozinhar uma série de acompanhamentos. E por mais estressantes que esses preparativos às vezes sejam, eles não são ruins. É uma ironia da condição humana o fato de que 15 horas de trabalho sejam gastas em três horas de festa — e uma ironia ainda mais estranha o fato de que essa péssima troca seja, de alguma forma, tão satisfatória.

Mas algo espreita os passos dessa versão materialista da nossa lista de tarefas do Natal regada a champanhe e peru. Trata-se de um impostor, que é mais sedutor e, de alguma forma, ainda mais exigente. É o Natal Perfeito.

O Natal Perfeito transforma a mundana lista de tarefas em um suporte para a consumação emocional de uma centena de desejos entrelaçados. Se nos esforçarmos o suficiente, a felicidade virá facilmente. Se tirarmos a foto perfeita para o cartão de Natal, se prepararmos a mesa perfeita e cozinharmos o bacalhau perfeito (se alguém souber um método infalível para isso, por favor, entre em contato comigo), se comprarmos e recebermos os presentes perfeitos, seremos felizes, saberemos que estamos felizes, seremos vistos como felizes e saberemos que somos vistos assim — e todas essas camadas de refração jamais comprometerão a pureza e o brilho daquela felicidade imediata e satisfatória.

Muitas vezes, a felicidade que tanto desejamos é de natureza doméstica, aquele círculo fechado de calor vertiginoso. O Natal é a época do ano em que as famílias se reúnem, o que significa que é a nossa chance de compensar todos os dias do ano que passamos ​​em cômodos separados, todo o tempo que gastamos em nossos celulares ignorando uns aos outros. O Natal, esse dia perfeito, é a nossa chance de apagar as brigas, a preguiça e a apatia, as mesquinharias do dia a dia. No nosso Natal Perfeito, vamos experimentar o que realmente significa ser família.

Até que, claro, as pessoas estragam tudo, como sempre fazem, com suas discussões, seus fracassos, suas carências, seus pontos de vista divergentes e mais uma centena de outras coisas que podem nos desviar do nosso ideal. O Natal Perfeito — esse ideal que pode ser construído e perseguido sem que o seu idealizador sequer se dê conta disso — geralmente morre aos poucos, sob os mil golpes da dura realidade.

Assim como acontece com a hospitalidade, existe uma ferida correspondente, uma dor intrínseca à vida em família, que vem à tona quando estamos mais imersos em suas delícias. Ela é aquela lacuna, por menor que seja, entre o que esperamos, o que deveria ser, o que podemos sentir por baixo da realidade concreta do momento presente — e o que de fato vivenciamos. Lutar contra essa lacuna buscando o Natal Perfeito é o caminho mais rápido para as lágrimas.

A hospitalidade é um mistério: uma forma transcendente de corrigir o problema da exclusão, que retém e até mesmo enfatiza a dor que transforma em alegria. A vida em família é um mistério: um núcleo ardente de solidariedade e comunhão, para o qual os seres humanos foram criados, mas que sempre revela alguma lacuna nos seus momentos de maior realização. A hospitalidade e a família estão entre as coisas mais doces que experimentamos nesta vida, precisamente porque os desejos envolvidos jamais serão plenamente satisfeitos neste mundo. A alegria e a dor apontam para algo que as transcende.

Então, prepare o salpicão e a tábua de frios ou a torta alemã. Ao menos uma vez, ouse fazer algo diferente. Convide outras pessoas. Faça com que os convidados se sintam especiais, e não peça nada em troca. Ninguém deveria passar o Natal sozinho. O Natal imperfeito significará listas de tarefas inacabadas, mágoas, decepções, silêncios constrangedores, conversas tediosas e aperitivos que acabam rápido demais. Significará cânticos, luzes coloridas, reencontros e usar aquela louça que você guarda para as ocasiões especiais; e tudo isso te deixará muito feliz, mas nunca feliz o suficiente. Mas celebre mesmo assim. A celebração nunca nos deixará felizes o suficiente; é o motivo pelo qual celebramos que nos deixará.

O Natal proclama, entre outras coisas, o nosso lugar ao redor da mesa divina, esse círculo íntimo onde desfrutamos de todos os direitos inquestionáveis ​​de herdeiros, e tudo pela generosidade humilde da graça (Romanos 8.17). Somos os filhos amados da casa, mas um dia fomos estrangeiros, mendigos que suplicavam por um lugar no estábulo (Lucas 2.7). Nesta vida, a cada instante, somos chamados a desempenhar um desses papéis. Que jamais nos esqueçamos que somos ambos. E que sempre nos alegremos por termos sido ambos.

Clare Coffey é uma escritora cujos trabalhos podem ser encontrados em Plough, The New Atlantis e outros.

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Autor

  • Cativo à Palavra

    Projeto Missionário Teológico e Pastoral.

    Para um coração cativo e dedicado ao Senhor.

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