
Sofrimento é uma realidade inevitável na experiência humana. Vivemos em um mundo caído e experimentamos diariamente os efeitos da Queda. Assim, todos, em maior ou menor grau, enfrentam perdas, dores emocionais, rupturas relacionais e marcas profundas que nos acompanham ao longo da vida. O luto, em especial, é um dos processos mais intensos e dolorosos que enfrentamos. Ele envolve não apenas o lidar com emoções como tristeza, confusão e solidão, mas também nos desafia a compreender quem somos diante da perda de alguém que amamos.
Entretanto, além da luta contra o sofrimento, existe ainda o risco espiritual e existencial: permitir que a tristeza ou o luto se tornem a base da nossa identidade. Quando isso acontece, corremos o perigo de viver não mais como filhos de Deus que sofrem, mas como pessoas definidas pela dor.
O luto e a identidade
O luto levanta a pergunta: Quem sou eu agora? A morte de um cônjuge, de filhos ou pais, por exemplo, altera profundamente a percepção de identidade: a pessoa deixa de ser “esposa”, “marido”, “mãe” ou “pai” daquele que partiu e passa a ser “viúva”, “viúvo” ou “órfão”. Essa mudança pode gerar sensação de vazio e deslocamento, especialmente quando a vida cotidiana já não é sustentada pelas mesmas relações e vínculos.
É natural e até necessário reconhecer essa nova condição. Contudo, quando o processo de adaptação à “nova história” se transforma em fixação, corre-se o risco de cristalizar a tristeza como elemento definidor da vida. Nesse ponto, a identidade deixa de estar fundamentada em Cristo e passa a girar em torno da perda. A pessoa enlutada passa a se identificar como “viúva”, “viúvo”, “órfão” e não como uma alguém amado e sustentado por Deus.
A história pessoal e a grande história de Deus
A Bíblia, no entanto, nos lembra que a identidade do cristão não é construída apenas a partir de suas experiências, mas está enraizada na grande história de Deus, a história da redenção. Ainda que a narrativa pessoal mude, seja pela perda, pela dor ou pela reconfiguração da vida, a história de Deus permanece imutável.
Em Cristo, a experiência presente é significativa, mas não é o capítulo final de nossa existência. A esperança cristã está firmada na eternidade, onde “Deus enxugará dos olhos toda lágrima” (Ap 21.4). Essa perspectiva protege o crente de reduzir sua identidade à tristeza, lembrando-o de que a vida é marcada por bênçãos no presente e pela esperança da glória futura. Por isso, mesmo quando nos entristecemos, não o fazemos como “os que não têm esperança” (1Ts 4.13).
A importância dos relacionamentos e da memória
Outro aspecto importante é compreender que as pessoas que fizeram parte de nossa vida continuam a nos moldar. O que somos hoje é fruto também das experiências vividas com aqueles que já não estão conosco. Reconhecer isso é saudável. Contudo, é fundamental que a memória e a gratidão pelo passado não nos impeçam de viver o presente com alegria, propósito e abertura para novos vínculos.
A tristeza não pode ser o filtro definitivo pelo qual interpretamos toda a realidade. O cristão é chamado a viver no “já e ainda não”: reconhecendo as perdas reais e permanentes nesta vida, mas afirmando, ao mesmo tempo, a esperança de redenção final e plenitude futura.
O risco de transformar a tristeza em identidade é real e sutil. O luto pode nos levar a redefinir quem somos apenas a partir da ausência e da dor por termos perdido uma pessoa amada. Entretanto, a fé cristã aponta para uma identidade maior: somos filhos de Deus, unidos a Cristo, participantes da grande história da redenção.
Assim, mesmo em meio ao sofrimento, somos chamados a viver com esperança. A tristeza não é negada, mas também não é absolutizada em nossa vida. O crente vive entre lágrimas e alegria, entre perdas e bênçãos, entre memória e esperança, sempre firmado na certeza de que sua verdadeira identidade está em Cristo e na promessa da vida eterna.
O Rev. Valdeci Santos é pastor da IP de Campo Belo, SP, Diretor do Andrew Jumper e colaborador do Brasil Presbiteriano
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