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Eu sou meu pior inimigo

Era um daqueles dias em que eu precisava que tudo saísse conforme o planejado. Mas, é claro, minha cadela escapou do quintal e ficou desaparecida por um tempo. Duas frenéticas horas depois, ela estava em segurança e de volta ao quintal de casa. Eu, em compensação, estava fazendo um curativo no meu ombro machucado e com a tela do celular quebrada, por causa de um tombo que levei, enquanto tentava encontrá-la.

Na minha cabeça, lembrei das palavras gentis de uma mulher que havia me enviado um e-mail, no começo da semana: “Como posso orar por você? Tenho certeza de que alguém como você é alvo dos ataques do inimigo constantemente”.

Alguém como eu. Admito que, quando eu estava sentada na calçada, segurando o meu celular com a tela quebrada e olhando fixo para os galhos das árvores, a frase “hoje não, Satanás” passou pela minha mente. Será que toda essa confusão era um ataque do Inimigo?

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Nos últimos anos, tenho notado que cada vez mais cristãos mencionam a obra do Diabo em conversas. Normalmente, as frases que dizem se parecem com estas:

O Diabo quer lhe impedir de fazer a vontade de Deus.

O Inimigo não quer que você viva uma vida abundante.

O Inimigo quer lhe derrotar. Aguente firme!

Quando instintivamente evocamos o Inimigo, estamos dizendo que cada momento e cada dificuldade momentânea fazem parte de uma grande batalha cósmica contra um adversário invisível do mundo espiritual.

Tais batalhas soam como algo emocionante e épico. Elas parecem muito mais emocionantes do que meu esforço diário para dominar minha necessidade de aprovação ou para negar meus próprios desejos malignos. Por isso, pode ser que sejamos muito ávidos em atribuir a Satanás algo que seria mais preciso atribuir à nossa natureza pecaminosa ou ao nosso mundo caído.

Para deixar bem claro, é verdade que Bíblia nos diz que o mundo espiritual é real e que nosso adversário, o Diabo, nos ronda como um leão, rugindo e procurando a quem devorar (1Pedro 5.8). A Escritura, porém, não aponta apenas um inimigo, mas sim três: o mundo, a carne e o Diabo (1João 2.15-16, Efésios 2.1-3).

Na luta pela santidade, precisamos estar atentos a esses três inimigos, que formam essa trindade do mal. Se colocarmos todo o nosso foco em apenas um deles, nós certamente sucumbiremos aos outros dois, mesmo sem querer.

E a ênfase importa. Os cristãos sempre querem ler e aplicar a Escritura preservando a ênfase que a própria Escritura estabelece. Sendo assim, quais desses três inimigos a Bíblia mais menciona?

As epístolas do Novo Testamento mencionam muitas vezes os ataques de “Satanás”, “o Diabo”, “o inimigo”, mas as coisas do mundo, os desejos carnais e os pecados da carne estão por toda parte — são citados em listas, contrastados com aquilo que é bom, e são focos constantes de advertência.

A Escritura coloca o mundo como nosso inimigo quando desejamos fazer deste mundo o nosso lar — quando desejamos acumular tesouros aqui, nos deleitar com os prazeres daqui, buscar aqui a aprovação humana — em vez de abraçarmos a gratificação futura da recompensa divina. Essa é a tentação de pertencermos a este mundo ou de brilharmos gloriosamente aqui na terra.

A ideia da carne como o nosso inimigo inclui qualquer desejo de simplesmente sermos indulgentes com aquilo que nos faz sentir bem, sem nenhuma referência a como essa indulgência pode afetar nossos semelhantes ou subverter nossa adoração a Deus. Imoralidade sexual, ganância, inveja, ciúme, glutonaria, malícia, fofoca e calúnia são algumas das formas mais comuns como essa ideia é expressa na Bíblia.

Em certo sentido, esses três inimigos estão interrelacionados. Todas as tentações encontram sua história de origem na primeira mentira da serpente, lá no Jardim do Éden. A Bíblia sem dúvida diz que Satanás pode nos tentar a pecar e que ele persegue a igreja. No entanto, pedidos de oração que afirmam que alguém está “sob ataque” [do Inimigo] frequentemente envolvem frustrações normais do ser humano, e não tentações nem perseguições verdadeiras, como as que vemos retratadas em Atos ou Apocalipse.

Praticamente qualquer circunstância inconveniente — um pneu furado, um voo cancelado, uma distensão muscular, um alerta de fraude do banco — pode nos levar a especular que o próprio Satanás está tentando atrapalhar o nosso dia. Se tais acontecimentos puderem estar nos tentando a pecar, talvez ele esteja mesmo.

Mas o curioso é que, quando a vida transcorre sem maiores problemas, não nos vemos como alguém que está sob ataque. Tendemos a pensar (apesar de as Escrituras indicarem claramente o contrário) que uma vida sem frustrações é sinal de que estamos fazendo a vontade de Deus. Mas talvez nada represente uma tentação maior, no sentido de sermos autoconfiantes e de confiarmos em nossa própria justiça, do que uma vida livre de problemas desafiadores e repleta de sinais de sucesso. Uma vida assim é, por si só, uma forma poderosa de sedução.

Há um conhecido ditado que diz: “Nunca atribua à malícia o que pode ser atribuído à incompetência”. Isso significa que temos a tendência de presumir que, por trás de qualquer ameaça ou perigo, há um complô e muito mais intenção do que realmente há.

Dada a ênfase considerável que o Novo Testamento atribui não às fontes sobrenaturais, mas sim às fontes carnais e mundanas de tentação, faríamos bem em acatar a sabedoria de nunca atribuir a Satanás aquilo que pode ser atribuído aos nossos próprios medos, aos pecados de omissão nossa ou apenas aos sintomas comuns da vida e que são normais em um mundo caído.

É Satanás que está me impedindo de realizar meu trabalho ou é a minha falta de domínio próprio? É Satanás que está sabotando meu casamento ou é o meu egoísmo? É Satanás que está incitando dissensões na minha igreja ou é aquela pessoa que simplesmente agiu como um idiota na reunião de membros? Estou sob ataque espiritual ou o que está acontecendo são apenas as frustrações normais da vida, que pressionam minhas próprias tendências pecaminosas?

É possível que uma presença demoníaca esteja me rondando, me tentando ao mundanismo ou à indulgência carnal ou, como o próprio Tiago observa, pode ser simplesmente que eu esteja sendo “tentado pelo [m]eu próprio desejo, sendo por este arrastado e seduzido” (1.14).

Cuidado para não dar falso testemunho contra o Diabo, pois ele adoraria isso. Ele adora quando atribuímos a ele coisas que não são dele. Ele adoraria nos ouvir orando contra os planos dele e nos esquecendo de renunciar ao mundanismo ou de confessar nossos próprios pecados. Ele adoraria nos ouvir orando fórmulas prontas para amarrar o Inimigo em nome de Jesus e nos ver descartar o assunto em questão sem sequer pensar em buscar a santidade pessoal.

Tome o cuidado de se lembrar que o Diabo é apenas um dos três inimigos aos quais devemos estar atentos, e que ele nem chega perto de ser o protagonista entre os inimigos citados no Novo Testamento. Com base na ênfase relativamente pequena que ele ali recebe, parece justo concluirmos que a cruz de Cristo, de fato, cumpriu sua promessa de neutralizar grande parte da ameaça espiritual que o Diabo representa para o crente na vida cotidiana.

Durante séculos, os cristãos reconheceram o poder da cruz e a impotência de Satanás em sua catequese. Logo na primeira pergunta, o Catecismo de Heidelberg, de 1563, ensinava o cristão a recitar: “Ele pagou integralmente por todos os meus pecados com seu precioso sangue e me libertou da tirania do Diabo. Ele também zela por mim de tal maneira que nem um fio de cabelo pode cair da minha cabeça sem que seja a vontade do meu Pai que está nos céus; de fato, todas as coisas devem cooperar para a minha salvação.”

Será que, assim como meus antepassados ​​espirituais acreditavam, eu também acredito hoje que fui liberto da tirania do Diabo? Porque, se eu acreditar nisso, vou me levantar agora mesmo da calçada, limpar os cacos de vidro da tela do meu celular, pedir perdão por aquele palavrão que disse, reconhecer que eu poderia ter sobrecarregado menos a minha agenda de compromissos e pedir paciência para seguir em frente pelo resto do dia. Assumirei a responsabilidade pela minha própria contribuição para que o dia corresse mal.

Nossa luta diária rumo à santidade pode não ser tão cinematográfica quanto uma épica batalha espiritual, mas como um trabalho lento e transformador é inegavelmente eficaz.

Respondi ao e-mail gentil daquela mulher com toda a honestidade que consegui reunir: No momento, eu sou minha pior inimiga. E sim, eu preciso de suas orações. Na semana que vem, meu inimigo pode ser a aprovação do mundo ou até mesmo um ataque espiritual. Mas, na maioria das vezes, meu pior inimigo sou apenas eu mesma me intrometendo no caminho, e precisando de novo do pão de cada dia da graça de Deus.

O mundo é nosso inimigo porque nos oferece a falsa promessa de uma vida boa. A carne é nossa inimiga porque ainda sucumbimos a seus hábitos pecaminosos, mesmo enquanto crescemos em nossa santificação. O Diabo é nosso inimigo porque a mentira do autogoverno ainda é tão atraente quanto era no Jardim. Mas somos nós que recebemos a boa-nova.

A boa-nova nos diz que este mundo está passando e que Cristo venceu o mundo. Ela nos diz que nossos desejos pecaminosos podem ser mortificados diariamente pelo poder do Espírito (Colossenses 3.5). E a boa-nova é que o Diabo, que já foi derrotado na cruz, foge, quando simplesmente resistimos a ele. Não precisamos de nenhuma batalha épica. Nunca subestime a sua fidelidade diária nas pequenas coisas.

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Autor

  • Cativo à Palavra

    Projeto Missionário Teológico e Pastoral. Para um coração cativo e dedicado ao Senhor.

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