Nota do editor: Este é o sexto de 17 capítulos da série da revista Tabletalk: Cristianismo e liberalismo.
Embora as batalhas da Reforma sobre a justificação somente pela fé tenham sido intensas, foi bem observado que a batalha mais feroz com a Igreja católica romana dizia respeito à autoridade. Subjacente às questões relativas ao evangelho puro da graça, havia uma pergunta fundamental: “Quem disse?”. Essa questão de autoridade não se escondeu nas sombras. Durante gerações, Roma posicionou de modo claro sua voz como o árbitro final e infalível da verdade, que decidia como a igreja deveria interpretar a Bíblia e a tradição e dava a palavra final sobre fé e entendimento. Para Roma, a voz final e infalível pertence ao magistério (o ensinamento autorizado dos bispos e do papa), com distinção especial para o papa quando ele fala ex cathedra (com autoridade).
Os reformadores expressaram seu próprio protesto e com razão divina. A igreja e seus oficiais não devem julgar as Escrituras. A igreja é uma creatura verbi, uma criação da Palavra. Assim entendido, a igreja e todos os seus oficiais estão sob a Palavra de Deus. Porém Roma usurpou a autoridade que pertence apenas à Palavra de Deus, converteu e distorceu a autoridade derivada da igreja em uma autoridade definitiva. Portanto, os reformadores rejeitaram de forma unânime as alegações de Roma de que a tradição e a Bíblia têm a mesma autoridade, não aceitaram sua voz magistral que desempatava e repudiaram as alegações de infalibilidade. Somente a Bíblia (sola Scriptura) detém certo o título de infalibilidade e atua sozinha como juíza suprema (Confissão de Fé de Westminster 1.10).
A hipótese da autoridade magistral por Roma é apenas uma manifestação da recusa persistente da humanidade em se curvar à Palavra de Deus. No início do século XX, nos Estados Unidos, J. Gresham Machen enfrentou um novo e formidável inimigo que desafiava a Palavra: o liberalismo teológico. Embora esse oponente tivesse uma face diferente daquele que enfrentou os reformadores, sua voz era alta, sua influência forte e os riscos eram altos. Machen sabia contra o que estava lutando e, com uma determinação semelhante à de Lutero, sob a autoridade consciente das Escrituras, com coragem perguntou: “Devemos aceitar o Jesus do Novo Testamento como nosso Salvador ou devemos rejeitá-lo com a Igreja liberal?”.
O liberalismo teológico estava no ar do modernismo pós-Primeira Guerra Mundial. E a igreja tradicional havia inalado. Depois do escândalo pelo Julgamento de Scopes (popularmente Julgamento do Macaco), o cristianismo fundamentalista virou uma piada cultural, um alvo rico em recursos para o escárnio dos cultos e sofisticados. O famoso sermão de Harry Emerson Fosdick de 1922, “Os fundamentalistas vencerão?”, ao mesmo tempo em que defendia uma lei suprema de tolerância, afirmou de forma não tão sutil sua percepção de que as doutrinas da fé cristã histórica eram absurdas. Fosdick implorava para que todos se dessem bem.
Contudo, não foi tão simples assim. Que maravilha de tolerância mostravam Fosdick e seus amigos liberais, todos os quais abraçaram o dogma inflexível de que a doutrina não era importante. Porém Fosdick demonstrou pouca simpatia por aqueles que se apegavam aos fundamentos da fé. É evidente que o amor tem limites e exige definição. Machen de maneira admirável percebeu: “A afeição humana, que aparenta ser tão simples, está na verdade cheia de dogmas”.
Como Machen observou, o liberalismo teológico não era uma forma aprimorada do cristianismo, mas uma religião diferente, baseada nas doutrinas naturalistas/humanistas da época. Em Cristianismo e liberalismo, Machen expôs com destreza a nova religião, o novo dogma e a autoridade autoproclamada. Ela “difere do cristianismo em sua visão de Deus, do homem, da fonte da autoridade e do caminho da salvação”.
Machen desafiou o título da igreja liberal sobre ser “fonte de autoridade”, assim como os reformadores desafiaram a reivindicação de Roma sobre ela. Ele recorreu às Sagradas Escrituras, nos é transmitida não como simples palavras humanas, mas como Palavra de Deus. Não produzida pelo homem (2 Pe 1:19-21), é a própria voz exalada de Deus (2 Ti 3:16) e “contém o relato da revelação divina ao homem, que não se encontra em nenhum outro lugar”. Machen se consolou com o fato de que a Bíblia é absolutamente o “relato verdadeiro”, porque Aquele “a quem o cristão adora é o Deus da verdade”. Se Deus é a verdade, então Sua Palavra — em sua totalidade — é verdade. Essa doutrina da inspiração plena (toda a Escritura é a própria Palavra de Deus) é o testemunho seguro da própria Escritura e do próprio Jesus. Somente a Escritura é a autoridade final.
Armado com a Palavra divina, Machen expressou com profunda percepção, compaixão sincera e clareza desarmante. Ele desafiou os dogmas do liberalismo: a rejeição do sobrenatural, a dizimação pecaminosa do pecado, a arrogância sobre a bondade suprema da humanidade, o eclipse perverso da teologia histórica por trás de uma miragem de tolerância reconfortante e a astuta transformação de Jesus em um guru em vez de Deus. Em vez da autoridade eclesiástica de Roma, a voz predominante da época era o liberalismo teológico, “fundado nas emoções mutáveis de pecadores”.
Com os pés nas areias movediças do sentimento, as principais denominações celebraram sua recém-descoberta liberdade: como a Bíblia é um livro feito pelo homem, podemos interpretá-la como quisermos. Podemos nos libertar das definições bíblicas de pecado e salvação, dos grilhões de dogmas antigos. A doutrina ortodoxa está ultrapassada, nesta nova era, sabemos melhor.
J. Gresham Machen tinha certeza de que eles não sabiam. E com zelo pela glória de Deus, se levantou para expor a escuridão com a luz da verdade:
Não nos enganemos. Um mestre judeu do primeiro século nunca poderá satisfazer o anseio de nossas almas. Vista-o com toda a arte da pesquisa moderna, jogue sobre Ele a cálida e enganosa luz do sentimentalismo moderno; apesar disso, todo o bom senso voltará a prevalecer, e durante nossa breve hora de autoengano — como se estivéssemos com Jesus — causará estragos em nós, a vingança da desilusão sem esperança.
Os liberais acreditavam ter encontrado a liberdade. Machen objetou: “A emancipação da vontade abençoada de Deus sempre envolve a escravidão a algum capataz pior”.
A vitalidade dada por Deus que provém ao descansar plenamente nas Escrituras, mesmo quando se é criticado por uma mentalidade antiquada e fechada, inflamou Machen e deveria aquecer o coração de todo crente:
Que não se diga que confiar em um livro é algo morto ou artificial. A Reforma do século XVI tinha como base a autoridade da Bíblia e deixou o mundo em chamas. Depender da palavra de um homem seria escravizante, porém depender da Palavra de Deus é vida. O mundo seria escuro e sombrio se fôssemos deixados por nossa própria conta e não tivéssemos a abençoada Palavra de Deus. A Bíblia, para o cristão, não é uma lei pesada, mas a própria Carta Magna da liberdade cristã.
Nessa liberdade, Machen permaneceu seguro, e nessa liberdade todo cristão se deleita. Pois aquele que tem prazer na Palavra de Deus dia e noite será aquele que resiste às tempestades e dá frutos (Sl 1).
Este artigo foi publicado originalmente na TableTalk Magazine.