Todos nós meditamos e somos moldados pelo objeto de nossa meditação. – Randy Alcorn.[1]
O salmista nos fala da prática bem-aventurada do homem que teme ao Senhor: “Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1.2).
O ouvir e meditar são os passos conducentes à prática. O meditar sincero aprofunda a leitura nos propiciando uma compreensão mais ampla e piedosa da doutrina.
Conforme dissemos, aquilo sobre o que meditamos, normalmente, molda a nossa perspectiva da realidade e o nosso comportamento. Esta sabedoria espiritual exige um laborioso processo de compreensão, entendimento e prática da verdade. Portanto, a nossa sabedoria consiste em nos submeter às Escrituras.
Temos que treinar os nossos pés na vereda da justiça. A obediência a Deus deve ser exercitada diariamente. Os salmistas testemunham:
Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. 2 Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. (Sl 1.1-2).
Quanto às ações dos homens, pela palavra dos teus lábios eu me tenho guardado dos caminhos do violento. Os meus passos se afizeram às tuas veredas, os meus pés não resvalaram. (Sl 17.4-5).
Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do Senhor. (Sl 119.1. Vejam-se: Dt 30.14; Rm 2.13; Tg 1.22-25).
No Salmo 1 vemos que enquanto o ímpio persegue freneticamente o conselho e caminho dos ímpios, o fiel, que tem na Palavra o seu prazer, ocupa a sua mente com a Lei do Senhor; de dia e de noite. A ênfase é no objeto da meditação (A Lei) e a sua constância.
Meditação e imaginação
A meditação é centrada em Deus e sua Palavra. Não é uma mera meditação introspectiva ou transcendental, mas, centrada em Deus e dirigida por Deus.[2] Portanto, todo momento e cada circunstância são oportunos para tomar a Palavra como alvo de nossas cogitações.
Curiosamente, no Salmo 2.1, o verbo “imaginar” (hãgãh) é o mesmo de “meditar” no Salmo 1.2. O verbo que é usado de forma negativa e positiva na Escritura, tem o sentido de murmurar, gemer, meditar, planejar, imaginar.
É possível que a Palavra fosse “murmurada”, lida à meia-voz durante a sua contínua meditação.[3] Esse meditar tinha como objetivo de, por meio da aprendizagem dos mandamentos de Deus,[4] adequar a sua vida aos ensinamentos ali contidos, não apenas um exercício intelectual e sensorial (Js 1.8).
O que ocupa a nossa mente?
A questão então, está no que ocupa a nossa mente: em meditar na Palavra ou em imaginar cousas vãs?.
Quando a nossa imaginação navega sem rumo pode se alimentar de coisas fúteis, tornando-se instrumento de destruição como, por exemplo, para maquinar planos de vingança e calúnia.
A nossa imaginação mal utilizada poderá criar estruturas mentais que se constituem em pressupostos concretos para o novo elaborar intelectual, nos conduzindo a um comportamento totalmente distante da realidade, cujo fundamento está em nossa imaginação pecaminosa que se alimentou de si mesma construindo um mundo fictício e, pior, destrutivo.
Esta “petição de princípio” imaginativa certamente acarretará muita dor e ansiedade e, pior, sem nenhum fundamento concreto.
Pecados fomentados no coração
Muitos de nossos pecados são fermentados em nosso coração antes de se transformarem em hábitos e vícios. Uma mente livremente influenciada pelo pecado facilmente elabora planos pecaminosos e, com mais sofisticação, os racionaliza, como que criando o veneno e o que julga ser seu antídoto. O nosso pensamento precisa estar cativo à obediência de Cristo (2Co 10.5).
Salomão nos instrui quanto ao perigo de invejarmos o ímpio e de desejarmos conviver com ele. Este homem é contagiante em suas maquinações para a violência as quais são verbalizadas para persuadir: “Não tenhas inveja dos homens malignos, nem queiras estar com eles, 2 porque o seu coração maquina (hg’h’) (hãgãh) violência, e os seus lábios falam para o mal” (Pv 24.1-2).
Davi descrevendo seus inimigos que se aproveitam de sua fragilidade circunstancial, registra: “Armam ciladas contra mim os que tramam tirar-me a vida; os que me procuram fazer o mal dizem coisas perniciosas e imaginam (hg’h’) (hãgãh) engano todo o dia” (Sl 38.12).
Conforme já citamos, Bavinck parece-me correto ao afirmar: “A estrutura de pensamento de determinado indivíduo muitas vezes nada mais é do que a história de seu coração”.[5]
Imaginação à serviço de Deus
A imaginação pode ser algo extremamente produtiva e útil quando a colocamos à disposição do serviço de Deus, na realização de projetos condizentes com a Palavra. Isso é válido para qualquer atividade, quer seja na arte, na visão missionária – quer próxima, quer distante –, na elaboração de um livro, no planejamento de nosso mês, na preparação de uma festa, etc. Podemos usar a nossa imaginação para visualizar o que pretendemos fazer e nos alegrar na consecução desses projetos.
O apóstolo Paulo é um exemplo positivo disso. Ele desejava muito visitar os crentes romanos. Orava por aqueles irmãos. Enquanto isso, imaginava quando estivesse com eles, levaria uma mensagem instrutiva e um compartilhar da fé edificante e confortador.
Por volta do ano 57 A.D., estando em Corinto, escreve:
Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção de vós 10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo, pela vontade de Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos. 11 Porque muito desejo ver-vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais confirmados, 12 isto é, para que, em vossa companhia, reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé mútua, vossa e minha. (Rm 1.9-12).
Nesta ocasião Paulo acredita ter uma boa oportunidade de visitar Roma. Contudo, antes deve passar pela Judéia para levar as ofertas para os santos dali. Sua trajetória seria arriscada visto ter muitos inimigos na região. Ele então pede aos crentes romanos:
30 Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor, 31 para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos; 32 a fim de que, ao visitar-vos, pela vontade de Deus, chegue à vossa presença com alegria e possa recrear-me convosco. (Rm 15.30-32).
A nossa imaginação meditativa tende a moldar o nosso comportamento,[6] reforçando propósitos, enchendo-nos de uma alegre perspectiva de concretização do que cremos ser útil e edificante.
Deus diz a Josué diante do desafio de conduzir o povo na terra prometida: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita (hg’h’) (hãgãh) nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1.8).
Meditação e crescimento
É impossível haver um genuíno amadurecimento espiritual distante da Palavra. Por isso, o meditar nas Escrituras é indispensável à nossa santificação.
Retomo a orientação de Poythress:
Não há atalho para crescer no entendimento da Escritura e no entendimento de Deus que fala na Escritura. Cada aspecto do entendimento ajuda outro aspecto. É importante crescer, porque um entendimento profundo da Escritura é vital à medida que nos esforçamos para servir a Cristo criativamente em situações que a Bíblia não aborda diretamente. A Bíblia como a Palavra de Deus aborda todas as coisas, quer diretamente, quer na forma de implicação. Ele fala para toda a vida. Mas para ver como isso se dá, pode ser necessário reflexão e meditação.[7]
Sobre o progresso espiritual e a meditação nas Escrituras, Calvino comenta:
Só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação nela.[8]
O meditar na Palavra e nos atos de Deus é uma prática abençoadora pelo fato de ocupar nossas mentes e corações com o que realmente importa; estimula a nossa gratidão e perseverança em meio às angústias.[9] Isto nos traz grande alívio.
Davi se confortava no meditar nos feitos de Deus
Davi no deserto se confortava meditando nos feitos de Deus, nas expressões palpáveis do cuidado do Senhor na sua vida. Isso o levava ao cantar jubiloso: “No meu leito, quando de ti me recordo e em ti medito (hãgãh), durante a vigília da noite. Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso” (Sl 63.6-7/Sl 77.11-12; 143.5).
Meditar na Palavra tem o sentido de considerá-la em nossas decisões, refletir sobre os seus ensinamentos. A meditação deve modelar, corrigir e confirmar o nosso comportamento. A meditação aqui é uma exortação à assimilação existencial da Palavra a fim de que esta se evidencie em nossa prática.
Comênio (1592-1670) avalia: “A meditação é a consideração frequente, atenta e devota das obras, das palavras e dos benefícios de Deus, e de como tudo provém de Deus (que opera ou permite) e de como, por caminhos maravilhosos, todos os desígnios da vontade divina são exatamente realizados”.[10]
A palavra “meditar”, em sua origem latina, significa, entre outras coisas, “preparar para a ação”. Desta forma, a meditação não tem um fim em si mesma, mas, sim, visa conduzir o nosso agir e o nosso realizar.[11]
A prática do meditar na Palavra nos confere maior discernimento e ao prazer de obedecer a Deus e de partilhar de seus ensinamentos.
Vejam os testemunhos inspirados descritos por servos de Deus: “Quanto amo a Tua lei! É a minha meditação (Sihãh) (considerar, perscrutar, cogitar) todo o dia” (Sl 119.97). “Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito (Sihãh) nos teus testemunhos” (Sl 119.99).
O Salmista narrando a sua prática prazerosa, diz: “Meditarei (Siha) nos teus preceitos, e às tuas veredas terei respeito” (Sl 119.15/Sl 119.27,48,78,148).
Meditação e santificação
O nosso meditar na Palavra tem implicações direta em nossa santificação,[12] visto que se constitui em um estímulo constante, por graça de Deus, a que cumpramos os seus mandamentos. Ao mesmo tempo, como nos adverte Calvino, a Palavra nos previne contra as armadilhas diabólicas que visam nos afastar de Deus:
Visto que Satanás está diariamente fazendo novos assaltos contra nós, é necessário que recorramos às armas, e é mediante a lei divina que somos munidos com a armadura que nos capacita a resistir. Portanto, quem quer que deseje perseverar em retidão e integridade de vida, então que aprenda a exercitar-se diariamente no estudo da Palavra de Deus; pois, sempre que alguém despreze ou negligencie a instrução, o mesmo cai facilmente em displicência e estupidez, e todo o temor de Deus se desvanece em sua mente.[13]
Em 1551, Calvino escreveu em resposta a uma carta de Laelius Socino (1525-1562),[14] onde este fazia várias especulações. À certa altura diz: “Se você tem prazer em flutuar em meios a essas especulações etéreas, permita-me, peço-lhe eu, humilde discípulo de Cristo, meditar naquilo que conduz à edificação da minha fé”.[15]
Notemos que este praticar percorre muitas vezes o caminho de uma análise introspectiva, por meio da qual colocamos em foco o nosso comportamento e o avaliamos a partir da Palavra, para que pela misericórdia de Deus, possamos corrigi-lo: “Considero os meus caminhos, e volto os meus passos para os teus testemunhos” (Sl 119.59).
Meditação e oração
O estudo da Palavra deve ser acompanhado de oração, pedindo a Deus que nos capacite a compreendê-la, desejando sempre nos submeter à vontade de Deus, harmonizando os nossos desejos com a sua santa e perfeita vontade. Esta compreensão da Palavra é-nos concedida pela iluminação do Espírito de Deus.
Calvino insiste neste ponto: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens”.[16]
Portanto, o homem bem-aventurado é aquele que se agrada em meditar na Palavra, dando atenção aos mandamentos de Deus a fim de poder cumpri-los, tornando-os o modelo de sua agenda de pensar e praticar.
Por mais prazeroso que seja o estudo da Palavra, o maravilhar-se com a majestade de Deus revelada e a sua instrução, nem sempre temos o discernimento correto na aplicação desta lei absoluta às nossas circunstâncias, cheias de ambiguidades. Por isso, as orações do salmista:
Guia-me pela vereda dos teus mandamentos, pois nela me comprazo (thaphets). (Sl 119.35).
Bendito és tu, SENHOR; ensina-me os teus preceitos. (Sl 119.12).
Ensina-me, SENHOR, o caminho dos teus decretos, e os seguirei até ao fim. (Sl 119.33).
A terra, SENHOR, está cheia da tua bondade; ensina-me os teus decretos. (Sl 119.64).
[1] Randy Alcorn, Decisões diárias cumulativas, coragem em uma causa e uma vida de perseverança: In: John Piper; Justin Taylor, eds. Firmes: um chamado à perseverança dos santos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 99.
[2] Veja-se: Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erica Moore, The Psalms as Christian Worship: A Historical Commentary, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 2010, (Sl 1.2), p. 139.
[3] Vejam-se: Mark D. Futato, Interpretação dos Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 55-56; Hebert Wolf, Hagâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 337; Willem A. VanGemeren, Psalms. In: Frank E. Gaebelein, ed. ger., The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1991, v. 5, (Sl 1), p. 55; M.V. Van Pelt; W.C. Kaiser, Jr. Hgh: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 981-982; Helmer Ringgren; A. Negoitã, Haghah: In: G. Johannes Botterweck; Helmer Ringgren; Heinz-Josef Fabry, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1978, v. 3, p. 321-324.
[4]“A aprendizagem é o processo mediante o qual a experiência passada do amor de Deus é traduzida, pelos aprendizes, em obediência à Torá de Deus” (D. Müller, Discípulo: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 662).
[5]H. Bavinck, A Certeza da fé, Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 42.
[6]“O coração do justo medita (hg’h’) (hãgãh) o que há de responder, mas a boca dos perversos transborda maldades” (Pv 15.28).
[7]Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 174.
[8]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 1.2), p. 53.
[9]“Quando formos premidos pela adversidade, ou envolvidos em profundas aflições, meditemos nas promessas de Deus, nas quais a esperança de salvação nos é demonstrada, de modo que, usando este escudo como nossa defesa, rompamos todas as tentações que nos assaltam” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 4), p. 89).
[10]João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), XXIV.7. p. 355.
[11]Packer assim define: “Meditação é o ato de trazer à mente as várias coisas que se conhecem sobre as atividades, os modos, os propósitos e as promessas de Deus; pensar em tudo isso, refletir sobre essas coisas e aplicá-las à própria vida” (J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 15).
[12]“Não podemos fazer progresso na santidade a menos que empreguemos mais tempo lendo e ouvindo a Palavra de Deus, e meditando sobre ela; pois é ela que é a verdade pela qual somos santificados” (Charles Hodge, O Caminho da Vida, New York: Sociedade Americana de Tractados, [s.d.], p . 294).
[13]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 18.22), p. 383.
[14]Este é tio de Fausto Paolo Socino (1539-1604), teólogo italiano que entre outras heresias fruto de uma interpretação puramente racional das Escrituras, negava a doutrina da Trindade, a divindade de Cristo, sustentando a ressurreição apenas de alguns fiéis, etc. O movimento herético conhecido como Socinianismo é derivado dos ensinamentos de ambos.
[15]João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 93.
[16]João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374.