A compreensão Reformada da autoridade bíblica, fundamenta-se na convicção de sua procedência conforme o próprio testemunho bíblico. A Escritura procede do único Deus da verdade. Por isso, ela não precisa de nosso testemunho para ser o que é.
O nosso testemunho ilustra a graça de Deus que possibilita a nossa compreensão da Palavra, mas, nada lhe acrescenta. Por isso, ela é autoritativa porque Deus é o seu autor, quem lhe confere autoridade.
A Palavra é autenticada por si mesma. Ela é totalmente digna de crédito.[1]O Espírito de Deus é O intérprete e comunicador da Escritura. Portanto, compreender a Palavra é graça![2] Somente o Espírito pode de fato nos convencer da autoridade da Escritura.[3]
A Palavra é a verdade de Deus, quer creiamos, quer não, aceitemos ou não. A autoridade da Palavra é decorrente da sua origem divina. “Nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). Desse modo, a autoridade da Palavra é proveniente do Deus da Palavra, não daqueles que a proclamam.
A Confissão de Westminster declara com precisão:
A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus.[4]
Ainda que o papel do leitor jamais deva ser desconsiderado, eliminar o caráter objetivo das Escrituras em prol de uma subjetividade livre de referências do próprio texto, torna-se o caminho fácil e, como sabemos, perigoso, para cada um achar o que quiser.
Uma espiritualidade “autônoma do texto”[5] produz uma fé vaga que se formaliza e se alimenta partindo de experiências e mais experiências que se autorreferendam num vicioso círculo de uma fé biblicamente frágil. Essa dita espiritualidade, cada vez mais distante da plenitude da revelação bíblica será sempre vulnerável a crendices e superstições, alheias ao necessário e imprescindível exame e depuração bíblica. Uma fé que não se sustenta biblicamente, é mera crendice.
Por outro lado, os efeitos da compreensão Reformada das Escrituras e de sua prática, podem ser constatados em muitos aspectos no testemunho dos Puritanos. O sacerdote romano, Bruckberger (1907-1998), analisando os Puritanos nos Estados Unidos, concluiu: “Os nossos puritanos não estudavam a Bíblia como exegetas, ainda menos como racionalistas. Ela era a sua vida”.[6]
De fato, se pelo Espírito recebemos a Bíblia como a Palavra autoritativa de Deus, não há lugar para relativismos. Ela é a nossa vida, a Constituição de nosso crer e agir. Quando a Escritura é levada a sério como Palavra autoritativa de Deus, os efeitos disso não tardam a aparecer em nossa vida como resultado desta cosmovisão.
O historiador Boorstin (1914-2004), analisando a importância do sermão entre os Puritanos na Nova Inglaterra, admite:
Era o púlpito, e não o altar, que ocupava o lugar de honra no templo da Nova Inglaterra. Por isso, o próprio sermão, a aplicação específica da Palavra de Deus, era o foco dos melhores espíritos da Nova Inglaterra. (…) A história do púlpito na Nova Inglaterra é, assim, uma crônica ininterrupta da tentativa levada a cabo pelos dirigentes do Novo Mundo para aproximarem firmemente a sua comunidade do modelo cristão.[7]
A teologia tem como propósito principal nos ajudar a compreender as Escrituras.[8] O valor da teologia está na mesma proporção de seu auxílio na interpretação da Palavra de Deus.
Ainda que Calvino recorresse às interpretações dadas aos textos no decorrer da história da igreja, o foco da autoridade estava nas Escrituras.
Comentando 1Co 2.11, Calvino interpreta:
Paulo, aqui, pretende ensinar duas coisas: 1) que o ensino do evangelho só pode ser entendido pelo testemunho do Espírito Santo; e 2) que a segurança daqueles que possuem tal testemunho do Espírito Santo é tão forte e firme, como se o que creem pudesse realmente ser tocado com suas mãos e isto em razão do fato de que o Espírito é uma testemunha fiel e confiável.[9]
Em outro lugar:
A genuína convicção que os crentes têm da Palavra de Deus, acerca de sua própria salvação e de toda a religião, não emana das percepções da carne, ou de argumentos humanos e filosóficos, e, sim da selagem do Espírito, o que faz suas consciências mais seguras e todas as dúvidas resolvidas.[10]
[1] Cf. François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 111.
[2] “O Espírito Santo abre nosso coração para confiarmos, crermos e obedecermos à Palavra de Deus na Escritura. A submissão continua sendo uma luta, inclusive intelectual. Devemos reconhecer nossas limitações, a realidade do mistério, a fraqueza de nossa fé, sem nos desesperarmos de todo o conhecimento e verdade” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 389).
[3]“Não buscamos argumentos, nem evidências comprobatórias, sobre os quais se firme nosso critério. Pelo contrário, sujeitamos-lhe nosso juízo e entendimento como algo que está além do processo aleatório do juízo” (João Calvino, As Institutas, I.7.5).
[4]Confissão de Westminster, I.4.
[5] Devo essa expressão ao Dr. Michel Augusto B. da Silva F. Gomes, que a utilizou em sua tese de Doutorado, O Drama da Pregação: do culto terapêutico à adoração baseada na exposição bíblica Teodramática, defendida no Programa de Pós-Graduação em Teologia das Faculdades EST, São Leopoldo, RS., no dia 12 de março de 2020, p. 186.
[6]Padre R.L. Bruckberger, A República Americana, Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1960, p. 31.
[7] Daniel J. Boorstin, Os Americanos: A experiência colonial, Lisboa: Gradiva, 1997, p. 23.
[8] Ver: Thomas F. Torrance, The Hermeneutics of John Calvin, Edinburgh: Lindsay & Co. Ltd., 1988, p. 70-71.
[9] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 2.11), p. 88.
[10]João Calvino, Efésios, (Ef 1.13), p. 36.