por Álvaro Alves de Faria
O poeta Carlos Nejar assegura que seu destino foi sempre seguir contra a corrente. Nisso pode se incluir o romance Carta aos loucos. Um romance escrito por um poeta, o que significa muito. O romance de Nejar é um livro denso, à maneira de Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, mergulhado no que pode ser chamado de profunda solidão do ser humano, uma longa viagem ao ausente, ao que se perdeu e só existe na memória, no fundo da vida.
Não é à toa de Nejar usa cinco citações como epígrafes, uma delas, a que mais cabe, de Robert Musil: “A escrita é mais importante que a obra acabada; a escrita é a obra”. Nejar segue isso à risca, garimpando palavras numa realidade de sonho em busca de uma aldeia que tem o nome de Assombro. E nesse lugar os seres são pessoas invisíveis que percorrem a paisagem como sombras, numa literatura com toque de mágica.
Em Rulfo, um personagem diz: “Eu tenho guardada minha dor em lugar seguro. Não deixes que te apague o coração”. As construções literárias de Rulfo em Pedro Páramo são notáveis, porque têm gosto de terra. Em Nejar o clima é o mesmo, envolvido numa poesia muitas vezes ferida, outras marcada de deslumbramento sobretudo enraizada no sonho. Os personagens de Nejar dizem: “O espírito em nós é como a água. Ao parar, apodrece”; “… é que educar a loucura encilha, aos poucos, o trotear da esperança”; “É noturna a infância dos mitos: somos a história ou a fábula”; “O sonho é que nos pode falar de seus cativos, eu não. Quem pode sonhar, sonhe e veja. O que é do sonho, é do sonho”; “A loucura é a sensatez do tempo. E o tempo, o sonho que do vive.”
Aí se vê a diferença de um romance escrito por um poeta. A própria linguagem se faz com outra voz. Carlos Nejar observa que existe um preconceito de que um poeta não pode ser romancista. E de que um romancista não pode ser poeta: “Descobri que, ao escrever poemas, escrevo os sonhos. E, ao escrever romance ou novela, escrevo os pesadelos”. Assinala que, às vezes, utiliza a alegoria para flagrar o que sucede ao homem. Assim, Carta aos loucos é uma tentativa de perceber o maravilhoso na busca da verdadeira sabedoria: “Após os 50 anos, dei-me conta de que minha memória do esquecimento está bem mais criativa do que a minha memória da lembrança”. Adianta que seu romance é feito do que lembra para o futuro, já que é o passado que aperfeiçoa o que há por vir.
Em sua viagem pelas palavras, Nejar já experimentou a prosa, com as novelas Um certo Jaques Netan, de 1991, e O túnel perfeito, de 1994. Essa linguagem levou Antônio Houaiss a escrever que a criação tão intensa e passional em Nejar busca atingir os ápices da solidariedade humana.
A busca da aldeia Assombro passa por muitos vultos, já que as sombras sempre estarão presentes. Nunca será possível apagá-las das paredes, dos vitrais, das janelas, das portas, do chão onde se fincam e permanecem a observar com olhos antigos, antepassados. O olhar inerte que passa pelas doenças, pelas mortes, gestos perdidos, pela reminiscência da dor, do ferimento aberto. Mas, antes de tudo, é uma narrativa da possibilidade do sonho.
Nejar explica que o romance contemporâneo, com honrosas exceções, tornou-se tão sofisticado, tão árido de pensamentos, que é preciso voltar à fonte da poesia para sobreviver. O retorno a Homero, à escrita ligada ao poder mágico da linguagem, acima dos gêneros, mesclando a todos com sabedoria. Ele observa que o romance só é grande quando alcança a plenitude da linguagem pela poesia. Cita Dostoiévski, Proust, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Rulfo e Cortázar como exemplos, entre outros, de autores que “fizeram a palavra voar, por tocarem a poesia”. E, como poeta, garante que “à medida em que se chega à linguagem primitiva chega-se ao coração do homem de todos os tempos”. Observa que a poesia pode estar na linguagem e na ação do romance. Trata-se de um território mítico. No seu romance, um território onde o mágico vê e “o instinto poético conduz à verdade que não precisa de prova”, como quis Valéry.
Carta aos loucos é uma fábula ensinando que “a loucura dos homens crê sobreviver matando sem parar”. Ou ainda que os sonhos são mais caridosos e reais que as próprias dádivas. Por fim, o arremate do autor dentro do livro, vestindo as sombras do seu personagem: “Não escrevo: risco fósforos, risco a memória como um fósforo na sua pequena caixa. E cada palavra tem sua memória. Riscar palavras é acender a memória”.
Carta aos loucos, de Carlos Nejar
Editora Sator
Brochura, 180 páginas
Formato: 16 x 23 cm
Álvaro Alves de Faria é jornalista, poeta e escritor. Como jornalista da área cultural, recebeu por duas vezes o Prêmio Jabuti de Imprensa, da Câmara Brasileira do Livro, em 1976 e 1983, por sua atuação em favor do livro.