Deus e o homem

Tempo de leitura 5 minutos

Nota do editor: Este é o quinto de 17 capítulos da série da revista Tabletalk: Cristianismo e liberalismo.

J. Gresham Machen lamentou a perda da concepção de Deus e da consciência do pecado na mente moderna. Segundo Machen, o liberalismo moderno desafiou, em primeira instância, a necessidade de ter uma concepção ou conhecimento de Deus. Se argumentou que indagar sobre o conhecimento de Deus é a morte da religião. Não devemos conhecer a Deus, mas senti-lo e se quisermos concebê-lo, devemos fazê-lo em termos vagos e gerais. Deus é Pai, porém isto nada mais significa do que a Sua paternidade universal para todas as criaturas, o que por sua vez encoraja uma fraternidade universal entre todos os povos.

Machen estava, é claro, disposto a reconhecer que as Escrituras falam, em certo sentido, da paternidade universal de Deus (ver At 17:28; Hb 12:9). Apenas alguns textos isolados oferecem apoio, a compreensão predominante de Deus como Pai nas Escrituras é em relação ao Seu povo redimido. No entanto, para Machen a paternidade de Deus não era o centro ou a essência da doutrina cristã de Deus. Em vez disso, um único atributo “torna inteligível todo o resto”: a “terrível transcendência de Deus”. Machen estava falando sobre a impressionante santidade de Deus: Sua distinção e alteridade. Para Machen, esta era a verdade que o liberalismo moderno havia perdido de vista. Como resultado, o liberalismo apagou a distinção Criador-criatura que é tão fundamental para o verdadeiro cristianismo. Em contrapartida, produziu um Deus panteísta que é só parte do “processo mundial”. Deus não era mais um ser distinto. Sua vida estava em nossa vida e nossa vida estava em Sua vida. Nas próprias palavras de Machen:

O liberalismo moderno, mesmo quando não se mantém um panteísmo consistente, ainda assim é, panteísta. Tende a remover a separação entre Deus e o mundo, e a nítida distinção entre Deus e o homem.

Uma consequência desta (má) concepção de Deus foi uma (má) compreensão do homem e, em particular, “a perda da consciência do pecado”. Como Deus não é mais concebido como santo e transcendente, Ele tem pouca importância na mente moderna e, portanto, também o pecado. Machen procurou discernir os precipitadores dessa mudança no pensamento moderno. Ao escrever logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-18), ele acreditava que a guerra produzia um foco excessivo nos pecados dos outros em detrimento dos próprios pecados. Na guerra, onde um lado é visto como a personificação do mal, é fácil não ver o mal no próprio coração. Havia também o problema do coletivismo do Estado moderno, no qual todos são vítimas das circunstâncias, o que obscurece “o caráter individual e pessoal da culpa”. Por trás da mudança na doutrina moderna do pecado, contudo, Machen viu uma causa mais sinistra e considerável: o paganismo. Por paganismo, Machen não quis dizer barbárie. Durante o auge do Império grego, o paganismo não era grotesco, mas glorioso. Era uma visão de mundo e de vida que encontrava “o objetivo mais elevado da existência humana no desenvolvimento saudável, harmonioso e alegre das capacidades humanas existentes”. Ou seja, a humanidade é, em essência, boa e pode alcançar o bem por meio do adequado treinamento e disciplina da mente e do corpo. Para Machen, tal perspectiva se tornou predominante em sua época, pois substituiu o entendimento cristão do pecado e da culpa pessoal diante de um Deus santo.

O resultado foram visões diametralmente opostas sobre a humanidade. “O paganismo é otimista em relação à natureza humana por si só, enquanto o cristianismo é a religião do coração quebrantado”. Segundo Machen, o problema do paganismo é que ele encobre o pecado no coração e, portanto, busca uma solução dentro de si mesmo. O cristianismo é diferente: descobre o pecado no coração e, assim, busca uma solução fora de si mesmo. O paganismo despoja o cristianismo das boas novas e as substitui por bons conselhos e encorajamentos. Não precisamos de perdão, só precisamos de coragem. Não precisamos de um arrependimento piedoso, apenas de uma boa resposta. Machen descreveu o evangelho do pregador liberal moderno desta forma: “Vocês são muito bons, respondem a todos os apelos que visam o bem-estar da comunidade. Agora temos na Bíblia — em especial, na vida de Jesus — algo tão bom que acreditamos que é bom o suficiente até mesmo para vocês, pessoas boas”. Nos dias de Machen, um moralismo de autoajuda havia substituído a boa notícia de um Salvador.

A crítica inteligente e perspicaz de Machen ao liberalismo moderno ainda é válida em nossos dias. E a resposta da igreja deve ser a mesma dos dias de Machen: uma reafirmação despreocupada e sem receio da distinção entre Deus e o homem. A igreja deve entender Deus e o homem nos termos dEle, não nos nossos termos. A este respeito, as Escrituras nos oferecem dois aspectos principais do abismo que existe entre Deus e o homem.

Primeiro, há a distinção entre Criador e criatura. Gênesis começa com uma afirmação da transcendência de Deus: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (1:1). Por consequência boa e necessária, várias verdades sobre Deus podem ser deduzidas desta frase de abertura das Escrituras: Deus é um, não muitos; Ele é simples, não composto; Ele é eterno, não temporário; Ele é espírito, não matéria; Ele é infinito, não finito; Ele é imutável, não mutável; Ele é autoexistente, não dependente; Ele tem vida em Si mesmo, não de outro ser; Ele é imortal, não mortal. Em suma, Deus é o Criador transcendente e apartado. E como o homem é criado, não Criador, ele é chamado a glorificar a Deus, o Criador, e desfrutar Dele para sempre. É o que as criaturas angélicas no céu têm feito desde o início da criação: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória” (Is 6:3).

Em segundo lugar, há a distinção santa-pecaminosa entre Deus e o homem, que surgiu por causa da queda. Antes da queda, o homem era distinto de Deus na relação criatura-Criador, porém possuía uma justiça original que lhe permitia desfrutar da comunhão com Deus. Contudo, era justiça sob provação e, portanto, a comunhão poderia ser perdida. Quando o homem caiu em estado de pecado por causa da transgressão de Adão, a comunhão foi interrompida e um abismo foi estabelecido entre Deus e o homem, que era tão infinitamente grande quanto a divisão entre Criador e criatura, só que agora infinitamente mais sério. Em sua visão do templo, o profeta Isaías expressa de forma vívida o significado dessa divisão entre o santo e o pecaminoso. Sua resposta de admiração ao ver e ouvir a natureza três vezes santa de Deus é logo seguida por sua declaração “ai de mim!”, ao compreender sua natureza pecaminosa à luz reveladora da santidade de Deus (Is 6:1-5).

Se a distinção Criador-criatura entre Deus e o homem reflete a realidade original criada, a distinção santo-pecaminoso reflete a realidade existencial presente. Assim, revela o grande problema da humanidade: como a comunhão entre um Criador santo e uma criatura pecadora pode ser restaurada? A mensagem do cristianismo é que Deus providenciou tal solução em Seu Filho, Jesus Cristo: o santo Deus-homem. Jesus era tudo o que Deus era e, ao mesmo tempo, tudo o que nós somos e, por conseguinte, por meio de Sua obra redentora, Ele é capaz de reconciliar Deus e o homem. Esta é a boa e simples notícia, porém profunda, do cristianismo: Deus e o homem podem ser reconciliados por meio do Deus-homem, Jesus Cristo. Este é o cristianismo ortodoxo, o cristianismo que Machen trabalhou com tanta coragem para defender e que o liberalismo moderno ainda combate com tanta ferocidade.


Este artigo foi publicado originalmente na TableTalk Magazine.