Nota do Editor: Em comemoração ao Natal de 2024, convidamos o Pr André Soares para nos presentear com um série a respeito de Jesus Cristo, onde ele nos mostrará a importância das quatro filiações de Jesus — filho de Davi, filho de Abraão, Filho do Homem e Filho de Deus. CLIQUE AQUI para acessar os demais artigos desta série, que serão postados durante este mês de dezembro.
Positiva ou negativamente, os pais influenciam seus filhos. A nossa filiação exerce um papel decisivo no estabelecimento de nossa personalidade e na definição de nosso rumo na vida. O fato de eu pertencer a uma família específica e ter exatamente os pais que tenho impacta a minha vida de maneira singular e afeta toda a minha trajetória no mundo. A forma como falo e gesticulo, o meu temperamento, as minhas preferências culinárias, os meus interesses, os meus hábitos — tudo o que sou e faço parece, de alguma maneira, ter recebido a influência de meus pais. Não parece haver um único traço em minha personalidade que não esteja marcado pelas suas digitais.
Não quero dizer, evidentemente, que não sejamos diferentes de nossos pais em certos (ou mesmo em muitos) aspectos. Porém, em algum momento de nossas vidas, quase todos já tivemos a experiência de percebermos em nossas próprias palavras e entonação o eco de nossos pais. “Meu Deus! Falei exatamente como o meu pai agora”, pensamos nesses momentos de epifania. Quem nunca ouviu depois de sorrir: “O seu sorriso é idêntico ao de sua mãe”? A influência de nossa filiação sobre nós costuma ser maior do que somos capazes de perceber.
Por vezes, o simples fato de pertencermos a uma família específica gera expectativas quanto à direção que daremos a nossas vidas. Por exemplo, não é incomum a expectativa de que os filhos de um empresário de sucesso deem continuidade ao negócio de seu pai. Na verdade, ao longo de boa parte da história, era normal que os filhos seguissem as profissões de seus pais (o que continua a não ser raro). O rumo que damos à nossa vida, com frequência, é altamente influenciado por quem são nossos pais e o que eles fazem.
As filiações de Jesus
Quando o Filho de Deus assumiu a natureza humana e foi concebido no ventre de uma jovem judia, ele escolheu a dedo a família à qual pertenceria. Ele não poderia nascer de quaisquer pais nem pertencer a qualquer família do mundo. Ele não poderia ter encarnado como membro de uma família da Oceania, da América ou do Extremo Oriente. Necessariamente, Jesus precisava ser filho de pais israelitas, da tribo de Judá, descendentes de Davi, a fim de cumprir as profecias a respeito dele.
Quando Jesus foi concebido, ele assumiu diversas filiações humanas significativas para a sua identidade e destino. Ele se fez filho (no sentido com o qual usamos o termo usualmente) de José e Maria, mas, sendo filho desse jovem casal, também se tornou filho (no sentido hebraico, isto é, descendente) de Davi e de Abraão.
Se retrocedermos ainda mais no tempo, podemos dizer que esse filho de Davi e Abraão, ao encarnar, também se tornou filho de Adão, o pai (ou seja, o ancestral) de todos os seres humanos, fazendo-se, assim, “Filho do Homem”, isto é, um ser humano. Mas, em um nível ainda mais fundamental, desde a eternidade passada, antes de se fazer homem e assumir qualquer filiação humana, Jesus sempre foi o Filho de Deus (e o será para sempre!).
Todas essas quatro reveladoras filiações de Jesus — filho de Davi, filho de Abraão, Filho do Homem e Filho de Deus — serão os nossos objetos de estudo nesta série. A primeira filiação que abordaremos será “filho de Abraão”. O que isso significa e o que revela a respeito da identidade de Jesus? O que aprendemos com o fato de Jesus ser o filho de Abraão?
O objetivo do Evangelho de Mateus
Mateus abre o seu Evangelho com uma afirmação tão sucinta quanto teologicamente densa:
Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. (Mt 1.1)
Cada palavra dessa frase mereceria um estudo aprofundado, mas o objetivo deste artigo é lidar apenas com uma das filiações de Jesus que Mateus nos apresenta. Jesus, que é o Cristo (isto é, o Messias, o Ungido), além de filho de Davi, é filho de Abraão.
Por que Mateus faz questão de iniciar o seu escrito com a afirmação de que Jesus descendia do patriarca Abraão? Para entendermos o que o motivou, temos de entender, de forma mais ampla, um de seus principais propósitos ao escrever o seu relato do ministério terreno do Senhor.
Um tema ecoa ao longo de todo o Evangelho de Mateus: o tão aguardado Messias se manifestou não para exaltar os descendentes físicos de Abraão e abater os gentios (uma concepção messiânica comum nos dias de Jesus), mas para salvar todos os que nele cressem, independentemente de sua etnia ou nacionalidade. O Evangelho de Mateus é, em um sentido, uma refutação do esnobismo étnico que imperava entre alguns dos principais grupos judaicos do primeiro século, mesmo entre alguns que abraçavam a messianidade de Jesus.
Na genealogia patrilinear com que Mateus inicia seu Evangelho (Mt 1.1-17), as únicas mulheres mencionadas são as que provêm do mundo gentílico: Tamar, canaanita (v. 3; cf. Gn 38.1-6); Raabe, de Jericó (v. 5; cf. Js 2.1); Rute, moabita (v. 5; cf. Rt 1.3-4); e a mulher de Urias, presumivelmente hetéia (v. 6; cf. 2Sm 11.3). Como, então, alguém poderia se declarar um seguidor de Jesus e, ao mesmo tempo, desprezar os gentios, já que o bebê Jesus descendia de quatro mulheres provenientes do mundo gentílico?
Um pouco mais adiante no Evangelho, João Batista, contrapondo-se aos seus compatriotas que se orgulhavam de descenderem de Abraão, exclamou: “… não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3.9). De maneira explícita e dura, João condena a soberba daqueles judeus que imaginavam que a sua simples filiação abraâmica lhes concedia uma posição privilegiada diante de Deus.
Depois de curar o servo de um centurião gentio e elogiar sua fé, Jesus assegurou: “Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8.11-12). No banquete celestial, junto aos pais da nação de Israel, Abraão, Isaque e Jacó, não se sentarão apenas os seus descendentes biológicos. Aliás, muitos destes, devido à sua incredulidade, não terão lugar nessa refeição, mas os gentios que creem em Jesus, o chefe da casa de Israel, estarão em comunhão com os patriarcas para sempre.
A vocação dos gentios e o banimento dos judeus que se fiavam na filiação abraâmica ainda são destacados por Jesus na chamada parábola das bodas (Mt 22.1-14), na qual um rei convida diversas pessoas para a festa de casamento de seu filho. Contudo, esses primeiros convidados, que representam os judeus, rejeitam o convite, motivo pelo qual o rei ordena a seus servos que chamem todos os que eles encontrarem pelo caminho, ou seja, os gentios.
Em todos esses textos do Evangelho de Mateus, o que fica claro é que muitos grupos judaicos relevantes do primeiro século haviam perdido de vista ou, ao menos, entendido de forma profundamente equivocada o motivo pelo qual Deus chamara Abraão: para, por meio da descendência dele, abençoar todas as nações da terra (Gn 18.18; 22.18).
Todas as nações
A forma grega na Septuaginta da expressão hebraica que, em Gênesis 18.18 e 22.18, é traduzida como “todas as nações” é panta ta ethnē (para os nerds, aqui está a expressão em grego: πάντα τὰ ἔθνη). Abraão e sua descendência foram vocacionados para abençoarem panta ta ethnē, ou seja, todas as nações. Isso é muito significativo, pois você se lembra do que, no fim do Evangelho de Mateus, Jesus ordenou aos seus discípulos? “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações…” (Mt 28.19). Devemos fazer discípulos de panta ta ethnē, a mesma expressão que consta na promessa feita a Abraão.
A repetição desse vocabulário não acontece por acaso. Ao longo de seu Evangelho, Mateus enfatiza a concessão da filiação abraâmica aos gentios que cressem em Jesus porque enxergava isso como o cumprimento da promessa de Deus ao patriarca. Quando o descendente prometido de Abraão se manifestasse, ele traria bênção a todas as nações. Já que Jesus, o tão aguardado filho de Abraão, tinha finalmente se manifestado, era a hora de todos os povos serem beneficiados. Os discípulos deviam, portanto, sair por todo o mundo e anunciar a todos os agrupamentos étnico-nacionais a boa e alegre notícia do Evangelho. Jesus, o Messias, filho de Abraão, chegou para receber na família patriarcal todo aquele que nele crer. Que maravilhosa notícia! Que bênção para todos os povos!
Quem seria capaz de dizer que aquela criança, nascida de uma pobre família judia, na pequenina cidade de Belém, era o filho de Abraão que o povo de Deus esperava por quase dois milênios? No entanto, a promessa se cumpriu, e, ao contrário da expectativa ufanista de muitos dos contemporâneos de Jesus, os gentios foram abençoados, e não humilhados ou desprezados. O Filho de Deus recebeu a filiação abraâmica para abençoar povos que, desde a Queda, estavam sob maldição.
Filhos de Abraão unidos
Já que o filho de Abraão se manifestou, o que nos cabe agora é cumprir a sua ordenança: sair por todo o mundo e anunciar o Evangelho a todas as nações. O Evangelho é a união dos povos que, antes, se odiavam. No Reino dos Céus, junto a Abraão, Isaque e Jacó, assentar-se-ão brancos e negros, espanhóis e catalães, sul-coreanos e norte-coreanos, israelenses e palestinos, chineses e japoneses, indianos e paquistaneses — todos os que creem no filho prometido de Abraão.
A despeito de sua etnia ou nacionalidade, todos os crentes passarão a eternidade em amistosa comunhão uns com os outros. Então, por que, no presente, teríamos qualquer tipo de preconceito quanto a outros povos? Se o filho de Abraão deu a filiação abraâmica a uma pessoa, não devemos jamais desprezá-la por conta do povo de onde ela provém. A origem de um crente não importa tanto quanto o seu destino: o Reino dos Céus.