O conflito modernista nas igrejas dos Estados Unidos

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Nota do editor: Este é o segundo de 17 capítulos da série da revista Tabletalk: Cristianismo e liberalismo.

Allan MacRae, um dos membros originais do corpo docente a se juntar a J. Gresham Machen no Seminário Teológico de Westminster, certa vez observou: “Ao longo da história da igreja de Cristo, houve uma luta incessante para manter a verdade”. Essa luta perene assumiu uma forma bastante virulenta de 1890 até a década de 1930.

A promessa de um novo século fomentou um espírito progressista e uma crença irrestrita na bondade e no potencial de realização do homem. A Primeira Guerra Mundial foi um grande revés, em especial, na Europa. No entanto, os Estados Unidos estando a um oceano de distância e intocados pela guerra diretamente, mergulharam de cabeça na década de 1920. “Os Loucos Anos Vinte”, chamariam. A descrição para esse período mais extenso é modernismo. A rejeição de Deus e da religião estão no topo da lista de esforços do modernismo. Essa bomba cultural caiu com força nas igrejas dos Estados Unidos.

À medida que os modernistas deixaram a igreja e o modernismo deixou Deus para trás, os líderes da igreja em todas as denominações começaram a “repensar” suas convicções teológicas e prioridades ministeriais. Não estavam dispostos a ficar de fora da conversa cultural, o que resultou no que os historiadores da igreja chamam de liberalismo. O liberalismo acomoda sensibilidades modernistas, resumidas principalmente em uma aversão ao sobrenatural e uma crença divina na bondade e no potencial humano. Isso significa que as doutrinas das Escrituras como inerrantes e autoritativas serão ignoradas. Isso quer dizer que Deus será reduzido a um Deus de amor e aceitação. Isso implica que Cristo será reduzido a um bom homem ou a um professor brilhante. Isso indica que a cruz será reduzida a um exemplo de amor e altruísmo. Isso sugere que o futuro reino de Deus será transferido para uma sociedade utópica de equidade aqui na Terra. O efeito cumulativo desses desvios doutrinários foi que a igreja se tornou negligente em sua comissão e deixou de ser luz na escuridão.

Contudo, como a citação de MacRae nos lembra, há aqueles que entram na luta para defender a verdade. Nas primeiras décadas de 1900, eram chamados de fundamentalistas. A palavra fundamentalista foi usada pela primeira vez para descrever qualquer pessoa que acreditasse nos fundamentos da fé e também lutasse por eles. Os fundamentos incluíam a inerrância das Escrituras, a divindade de Cristo, Sua expiação substitutiva na cruz, milagres e a necessidade de pregar e crer no evangelho. Para entender essa divisão entre fundamentalismo e liberalismo, consideremos três indivíduos: Charles Augustus Briggs (1841-1913), Harry Emerson Fosdick (1878-1969) e J. Gresham Machen (1881-1937).

Briggs estudou no Union Theological Seminary em Nova York (um seminário da Presbyterian Church in the United States of America ou PCUSA) e mais tarde estudaria no exterior, na Alemanha. Briggs aceitou totalmente a teoria da alta crítica, uma visão que, em essência, nega a origem divina da Bíblia e a submete ao mesmo escrutínio que qualquer outro texto receberia. Billy Sunday costumava fazer piadas em suas cruzadas evangelísticas: “Vire o inferno de cabeça para baixo e o que está estampado no fundo? ‘Feito na Alemanha’”. Quando Sunday afirmou isso, ele tinha em mente a alta crítica mais alta e seu impacto direto em acadêmicos americanos como Briggs. Ao longo da década de 1880, Briggs entrou em conflito com os conservadores, sobretudo com o corpo docente do Seminário Teológico de Princeton. Em sua palestra inaugural de 1891 como titular da Cátedra Edward Robinson de Teologia Bíblica na Union Seminary, Briggs disparou uma salva de canhão. Na palestra, intitulada “A autoridade da Sagrada Escritura”, ele afirmou que o dogma da inspiração verbal é uma “barreira” para uma compreensão adequada da Palavra de Deus. Briggs foi acusado de heresia e considerado culpado em 1893, o que forçou a Union Seminary a demiti-lo. A Union Seminary depressa o recontratou por meio de um canal de financiamento independente. O famoso buraco foi aberto na represa. A Union Seminary se tornou a sede do liberalismo na igreja presbiteriana e até mesmo nas igrejas dos Estados Unidos, e os estudos bíblicos em muitas universidades e seminários logo foram inundados com visões heréticas sobre a Bíblia. As visões ortodoxas sobre todas as doutrinas começaram a ser varridas.

Dietrich Bonhoeffer passou 1929-30 estudando na Union Seminary e a achou péssima. Considerou as igrejas em Nova York igualmente terríveis. Depois de visitar igreja após igreja, incluída a de Fosdick, fez uma breve observação em seu relatório: “Não há teologia aqui”. O que ele quis dizer é que tudo o que ouviu dos púlpitos foi a palavra do homem, não a Palavra de Deus. A alta crítica foi da Alemanha para os seminários e para as igrejas dos Estados Unidos. Ideias, de fato, têm consequências. Se Briggs ilustra o impacto do liberalismo nos seminários, Fosdick ilustra o impacto do liberalismo nas igrejas. Duas coisas impulsionaram Fosdick para os holofotes: era cativante e carismático e tinha o apoio do homem mais rico dos Estados Unidos, John D. Rockefeller.

Em 21 de maio de 1922, Fosdick pregou o sermão “Os fundamentalistas vencerão?”, no qual ele repensou a fé cristã “clara e explícita em termos modernos”. Era uma adaptação padrão. Por exemplo, consideremos sua interpretação do nascimento virginal de Cristo. Fosdick opinou: “Os fundamentalistas dizem que devemos entender o nascimento virginal como um fato histórico e como literal e inegavelmente verdadeiro”. Fosdick rebateu: “Acreditar no nascimento virginal como uma explicação para uma grande personalidade é uma das formas conhecidas com que o Mundo Antigo estava acostumado a explicar uma superioridade incomum”. Ele continuou mencionando que Buda e Zoroastro tiveram o mesmo nascimento. No entanto, negar o nascimento virginal é negar a divindade de Cristo, e isso é negar o evangelho ortodoxo. H. Richard Niebuhr viria a descrever o liberalismo como uma doutrina de “um Deus sem ira levou homens sem pecado a um reino sem juízo por meio dos ministérios de um Cristo sem uma cruz”. Esse era Fosdick.

Nessa briga entrou J. Gresham Machen. Machen era filho de um advogado de Baltimore, e sua mãe (cujo sobrenome de solteira era Gresham) nasceu em Macon, Geórgia. Ele se graduou em Estudos Clássicos na Johns Hopkins e depois fez mestrado na Universidade de Princeton e no Seminário Teológico de Princeton. Mais adiante, se mudou para a Alemanha para continuar seus estudos. Retornou ao Seminário de Princeton, onde atuou como professor de 1906 a 1929, interrompido por dois anos de serviço na YMCA na França durante a Primeira Guerra Mundial. Ele foi orientado pelo “Leão de Princeton”, Benjamin Breckinridge Warfield. Quando Warfield morreu em 1921, o manto de defensor da fé passou para Machen.

Machen tinha credenciais, pois enfrentou diretamente a alta crítica alemã e era muito inteligente. Amava a doutrina ortodoxa, o sobrenatural e o evangelho. Tudo isso teve origem no livro que publicou em 1923, Cristianismo e liberalismo. O livro aborda as doutrinas essenciais do cristianismo, e mostra que o liberalismo não é uma nova versão do cristianismo, mas um falso evangelho. Em consequência, o liberalismo não oferece nenhuma esperança. Oferece pedras em vez de pão.

O livro de Machen foi odiado pelos teólogos liberais e criticado por eles nas resenhas. Curiosamente, os intelectuais modernos, como Walter Lippmann e H. L. Mencken, respeitaram o livro e reconheceram a validade dos argumentos de Machen. Para os fundamentalistas, o livro os encorajou a continuar na luta pela fé. O que aconteceu com Machen depois de publicar seu livro?

Em 1929, o Seminário Teológico de Princeton reorganizou o conselho e mudou de rumo diretamente para o liberalismo, o que obrigou a Machen a sair. Ele cruzou o Rio Delaware e inaugurou o Seminário Teológico de Westminster, na Filadélfia. Quando Machen organizou um novo conselho missionário, pois o conselho missionário da denominação havia mudado o foco da proclamação do evangelho para a transformação social, ele foi destituído. Em 1936, liderou a formação da Orthodox Presbyterian Church [Igreja Presbiteriana Ortodoxa, em tradução livre]. Poucos meses depois, em 1 de janeiro de 1937, Machen morreu de pneumonia em Dakota do Norte, para onde havia viajado para acalmar os ânimos em uma igreja da nova denominação.

O primeiro biógrafo e colega de Machen, Ned Stonehouse, o chamou de “Valente-pela-verdade”, em homenagem ao personagem corajoso de John Bunyan. E ele era corajoso. O livro de Machen e sua luta foram oportunos. Porém há também uma atemporalidade importante. Portanto, Cristianismo e o liberalismo podem ser ainda mais aplicáveis hoje, cem anos após sua primeira publicação, do que eram no início. Enquanto lutamos pela fé na luta perene e incessante que se manifesta em nossos dias, podemos agradecer a Deus por Machen e seu livro, e faríamos bem em passar algum tempo lendo suas páginas.


Este artigo foi publicado originalmente na TableTalk Magazine.