Nota do editor: Este é o último capítulo da série da revista Tabletalk: Cristianismo e liberalismo.
Starbucks. Hotel Marriott. Southwest Airlines. Até a Domino’s Pizza. Parece que quase todas as empresas têm algum tipo de programa de fidelidade. Quanto mais você come, bebe, voa ou passa a noite, mais você ganha. Programas de recompensas são compreensíveis, pois refletem a maneira como o mundo funciona. Quando trabalhamos, ganhamos um salário. Nossas conquistas muitas vezes geram elogios e benefícios.
Então, parece que quando os escritores do Novo Testamento falam sobre recompensas celestiais no reino de Deus, entendemos com exatidão do que estão falando. Se trabalharmos muito na vida cristã, então ganharemos bênçãos de Deus, certo? Errado. O ensino da Bíblia sobre recompensas é apenas um exemplo de como Deus inverte nossas expectativas e suposições.
Apenas por essa razão, precisamos refletir com cuidado sobre o que as Escrituras ensinam (e não ensinam) sobre recompensas celestiais. Podemos pensar sobre esse ensinamento bíblico em cinco linhas.
Primeiro, há recompensas celestiais, vinculadas à obediência e ao serviço do crente nesta vida. O ensino de Jesus no Sermão do Monte está repleto de referências a recompensas celestiais (Mt 5:12, 46; 6:1-2, 4-6, 16, 18). As recompensas são somente para aqueles que confiam e seguem a Cristo, não para os incrédulos. Essas recompensas serão dadas não no presente, porém no futuro, depois que o crente deixar esta vida (ver 16:27). As recompensas estão relacionadas às boas obras que fazemos nesta vida, incluída ações pequenas e insignificantes como “quem der a beber, ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo” (10:42).
Os apóstolos também enfatizam o fato e a importância das recompensas na vida cristã. Ao se dirigir aos ministros e presbíteros, Paulo declara que o último dia será um tempo de peneirar e avaliar os trabalhos ministeriais. “E qual seja a obra de cada um o próprio fogo o provará. Se permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edificou, esse receberá galardão” (1 Co 3:13-14). Ao se dirigir a todos os crentes, Paulo menciona sobre “a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda” (2 Tm 4:8). Paulo encoraja os “servos” a viver em fiel obediência a Cristo, porque sabem “que recebereis do Senhor a recompensa da herança” (Cl 3:22, 24).
Em segundo lugar, há diferenças nas recompensas celestiais, com alguns crentes recebendo mais ou menos do que outros. Jesus ressalta esse argumento em Sua parábola das dez minas (Lc 19:11-27). Na parábola, um homem nobre dá a cada um dos seus servos uma mina. Depois de algum tempo, cada servo comparece diante do rei e presta contas do que fez com aquela mina. O primeiro servo ganhou dez minas com sua única mina, e o segundo servo ganhou cinco minas com sua única mina. O rei recompensa o primeiro servo com “autoridade sobre dez cidades” e o segundo servo com autoridade sobre “cinco cidades”. Há desigualdade nessas recompensas celestiais. Alguns ganharão mais que outros. Porém se as recompensas forem distribuídas de forma desigual, não serão atribuídas de forma aleatória. As recompensas no céu são proporcionais (mas nunca baseadas) à obediência na terra: o servo que ganhou dez minas recebe autoridade sobre dez cidades, e o servo que ganhou cinco minas recebe autoridade sobre cinco cidades. A recompensa pelo investimento supera tanto o que foi conquistado que nossa obediência terrena não o merece. A recompensa não se baseia na obediência nesse sentido meritório.
Terceiro, todo crente é justificado exatamente na mesma base, a justiça imputada somente por Cristo. As Escrituras ensinam que “não há justo, nem um sequer”, que “o salário do pecado é a morte” (Rm 3:10; 6:23). Longe de ganhar a vida e o céu, os humanos ganharam a morte e o inferno. Por natureza, somos culpados do primeiro pecado de Adão (além de todos os nossos próprios pecados). Portanto, nascemos neste mundo condenados, merecedores de juízo. A esperança do pecador não está nele mesmo, porém em Cristo. Como Paulo nos revela em Romanos 5:12-21, Cristo é o segundo Adão: descendente de Adão, mas não “em Adão”. Ele é totalmente justo e obediente e, por conseguinte, mereceu a vida. Na cruz, Ele pagou toda a penalidade pelo pecado do Seu povo. A obediência e a morte de Cristo são a “justiça” que se dá como um dom gratuito a todo pecador que confia em Cristo (v. 17). Essa justiça é imputada ao pecador no momento em que ele crê (v. 19). Com base apenas na justiça de Cristo, o pecador é considerado justo ou justificado (4:4-5). A justificação é pela fé, mas não com base na fé, e até mesmo a fé é o dom gratuito de Deus ao pecador indigno (Ef 2:8). Portanto, todo cristão tem exatamente o mesmo título para o céu: os méritos de Cristo, creditados e recebidos somente pela fé. Ninguém tem o direito de se vangloriar diante de Deus. Nossa glória está apenas no Senhor (1 Co 1:29, 31).
Quarto, justificação e recompensas celestiais não estão em contradição ou tensão. À primeira vista, pode parecer que são opostas. A justificação depende apenas na obra de Cristo, porém as recompensas celestiais estão vinculadas às nossas obras. A justificação dá a cada pecador crente exatamente a mesma coisa, mas as recompensas celestiais tornarão os crentes visivelmente diferentes uns dos outros. Ao examinar mais de perto, não há contradição ou tensão entre essas duas perspectivas do ensino bíblico. Em primeiro lugar, reiteramos que somente os méritos de Cristo admitem qualquer pecador no céu. Quando estivermos na glória, nosso único direito de estar lá é consequência do que Cristo fez por nós em Sua vida e morte. Fazemos a oração do publicano: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc 18:13), até darmos nosso último suspiro na Terra. Em seguida, as recompensas que Deus entrega são o dom da graça. A parábola das dez minas de Jesus testemunha essa realidade. As recompensas concedidas são totalmente desproporcionais ao que os servos do homem nobre fizeram: dez cidades pela pequena quantia de dez minas. De forma alguma merecemos ou ganhamos nossas recompensas celestiais.
Então, como podemos harmonizar justificação e recompensas celestiais? A justificação dá livremente ao pecador o direito à vida eterna (Rm 5:17). O que é a vida eterna? É o conhecimento de Deus em Cristo (Jo 17:3) e habitar na presença de Deus como nosso Deus (Ap 21:3). As recompensas revelam o fato de que os crentes no céu não experimentarão essa vida em graus iguais. Alguns aproveitarão a vida de maneira mais plena e em maior medida do que outros. Os teólogos têm utilizado a ilustração de vasos ou recipientes para ilustrar essa ideia. Todo crente é um vaso vazio que será preenchido no céu. Ninguém sentirá falta ou insatisfação. Mas cada crente no céu será um vaso de tamanho diferente, com tamanho proporcional à obediência daquele crente na terra. Um comporta 500 mililitros, outro 4 litros, e o outro 150 litros. E porque o céu é um mundo de amor perfeito, e o amor não arde em ciúmes (1 Co 13:4), nos deleitaremos apenas naqueles crentes que são “vasos maiores” do que nós. Todos serão saciados, alguns aproveitarão mais da vida celestial do que outros e ninguém invejará ou reclamará.
Quinto, as recompensas celestiais servem a propósitos essenciais na vida do cristão na Terra. As Escrituras revelam a existência de recompensas celestiais para propósitos práticos. Por um lado, as recompensas celestiais devem nos motivar a obedecer a Deus aqui e agora. É importante ressaltar que Jesus nos ensina que Deus tem prazer em recompensar os discípulos por ações que o mundo considera irrelevantes (Mt 10:42; comparar com Cl 3:24) ou pela obediência que encontra resistência e perseguição nesta vida (Mt 5:11-12). Jesus está nos motivando a fazer as pequenas ações e as ações difíceis, que compõem grande parte da vida cristã. As recompensas nos encorajam a buscar a vida de santificação e santidade que todo cristão deve buscar (Hb 12:14). As recompensas apelam ao desejo mais profundo do cristão: conhecer a Deus em Jesus Cristo. As recompensas nos mostram a realidade e a bem-aventurança do céu, especialmente quando esta vida passageira na Terra é difícil e miserável.
Porém um dos aspectos mais importantes que as recompensas fazem pelos cristãos é nos lembrar do caráter do nosso Deus. Entre as mentiras primárias de Satanás está que Deus não é bom e não quer o que é para o nosso verdadeiro bem-estar e felicidade (ver Gn 3:1-7). As Escrituras nos lembra várias vezes da verdade sobre Deus: Ele é bom, e o que Ele faz é bom (Sl 119:68). Tudo o que nossa dívida merece de Deus é condenação e morte. Por Sua misericórdia eterna, o Pai nos uniu ao Seu Filho. Cristo assumiu nossa dívida e pagou o que era necessário, e Deus nos deu a justiça de Cristo e a vida que Ele garante (2 Co 5:21). Nossa justificação testifica da bondade e graça de Deus. Além disso, Deus em Cristo tem prazer em aceitar nossa obediência falha, imperfeita e manchada pelo pecado. As recompensas que Ele dá são tão desproporcionais ao que fazemos que fica claro que são recompensas da graça. Deus deseja a nossa obediência que é Sua por direito, por isso Ele oferece essas recompensas para nos motivar e encorajar a servi-lo nesta vida. Nossa santificação testifica a bondade e a graça de Deus.
Continuarei nesta vida a participar de programas de recompensas corporativas. Gosto de receber benefícios pelo que compro e faço. Porém sou muito grato, pois o reino de Deus e a vida eterna não funcionam dessa maneira. Confiar somente nos méritos de Cristo e me esforçar cada vez mais para desfrutar na glória a vida que Deus me deu gratuitamente na Terra: esse é um programa de “recompensas” que apenas Deus poderia criar.
Este artigo foi publicado originalmente na TableTalk Magazine.