Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 39

Tempo de leitura 16 minutos

D. Oração, trabalho e descanso

 

Há uma diferença entre lavar louças e pregar a palavra de Deus; mas no tocante a agradar a Deus; nenhuma em absoluto. ‒ William Tyndale (c. 1494–1536).[1]

Quer você esteja fazendo a exegese do Salmo 110, quer esteja examinando as penas de um pica-pau, você deve oferecer a obra a Deus e ver esse esforço intelectual, essa erudição, como parte da adoração. ‒ D. A. Carson.[2]

Não existe monasticismo no Cristianismo. ‒ Francis Schaeffer.[3]

Jesus Cristo nos ensinou a orar: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6.11). Algo surpreendente nessa petição é a passagem da consideração da majestade de Deus e da vinda do seu Reino (Mt 6.10) para “o pão nosso”. Isto é maravilhoso! O Deus que habita o alto e sublime, o Deus soberano, cuja majestade não pode ser contida por todo o universo, também cuida de nossas necessidades e nos ensina a suplicar-lhe por elas. Faz-nos enxergar o que de fato é prioritário e, ao mesmo tempo, nos ensina a pedir por aquilo que também é necessário para a nossa existência.

Deus declara em sua Palavra a respeito de si mesmo: “Porque assim diz o Alto, o sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e vivificar o coração dos contritos” (Is 57.15).

Lloyd-Jones comenta de forma extasiada: “Esse é o milagre da redenção. Esse é o sentido mesmo da encarnação, a qual nos ensina que o Senhor Jesus Cristo cuida de nós aqui na terra, ligando-nos com o Todo-Poderoso Deus da     glória. O reino de Deus e o meu pão diário!”[4]

Uma das coisas fascinantes que esse texto nos ensina, é que o Deus que cuida do universo, dos seus diversos sistemas e galáxias, sustentando todas as coisas com o seu poder, também cuida de nós, das nossas necessidades, por mais irrelevantes que elas possam parecer, muitas vezes, ao nosso semelhante. Isso nos enche de reverente gratidão e conforto. Deus cuida de nossas necessidades.

Calvino comenta com sensibilidade que, “seja qual for a maneira em que Deus se agrada em socorrer-nos, Ele não exige nada mais de nós senão que sejamos agradecidos pelo socorro e o guardemos na memória”.[5]

Essa petição, que parece tão simples, tem sido, ao longo dos séculos, alvo de grandes disputas a respeito de uma palavra grega que é traduzida como “cada dia” ou “cotidiano” (e)piou/sioj = “suficiente para o dia”, “suprimento para o dia vindouro”, “suficientemente para cada dia”).

O problema da tradução dessa palavra é que ela era praticamente desconhecida na literatura grega, fora dos textos de Mateus e Lucas.[6] Não vamos nos alongar nessa questão – inclusive porque tem sido impossível precisar a derivação da palavra[7] – contudo entendemos que o sentido básico desta petição é: “O pão que é-nos necessário, dá-nos hoje, dia após dia”, estando implícita nesta oração a certeza da providência de Deus, bem como a necessidade de estarmos sempre atentos a esse fato, certos de que o Senhor cuida de nós dia após dia (Sl 37.25).

Calvino está correto ao dizer: “A maior de todas as misérias é o desconhecimento da providência de Deus; e a suprema bem-aventurança é conhecê-la”.[8]

Como é óbvio, o “pão” aqui – que era a “comida principal de Israel”[9] – significa a nossa comida em geral (1Sm 20.34; Lc 15.17), bem como todas as nossas necessidades físicas (Dt 8.3/Mt 4.4/Lc 4.4).[10] Em virtude disso, o “pão” deve ser entendido, nesse contexto, como sendo tudo aquilo que é necessário à nossa vida: alimento, saúde, lar, cônjuge, filhos, bom governo, paz, vestuário, bom relacionamento social, etc.[11]

Aprendemos, de forma decorrente, que Deus não menospreza o nosso corpo. Ele não desconsidera as nossas necessidades vitais. Jesus nos ensina a orar também por elas. Deus cuida do homem por inteiro. Considera-nos como de fato somos, seres integrais, que têm carências próprias que precisam ser supridas. Nem poderia ser diferente considerando que a nossa salvação é integral: corpo e alma. O corpo é o veículo de nossa alma. Há uma integridade em nós.[12]

Analisemos agora, algumas outras lições que podemos aprender com esta petição que, indiretamente, está relacionada ao Quarto Mandamento:

 

1) Moderação

Jesus nos ensina a ser moderados em nossos desejos e petições. Ele nos instrui a orar pedindo o pão, não o luxo, o supérfluo, mas o que é necessário à nossa vida.

Essa lição encontramos em outros textos bíblicos. Tiago diz: “Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres” (Tg 4.2).

Agur suplica a Deus duas coisas: “Afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem a pobreza nem a riqueza: dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando eu farto, te negue e diga: Que é o Senhor? ou que, empobrecido, não venha a furtar, e profane o nome de Deus” (Pv 30.8-9).

Paulo aconselha a Timóteo, a fim de que ele também ensine isso:

Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé, e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. (1Tm 6.8-10).

Nessa passagem não temos nenhuma recriminação à riqueza. Todavia, somos alertados quanto ao seu perigo. Por isso, Jesus nos ensina a pedir o necessário. A abundância, que longe está  de ser má em si, com muita frequência, pode nos fazer esquecer Deus e de seus benefícios. Nesse caso, é verdade, o mal não está na fartura, mas, na imaturidade daquele que, ao invés de possuí-la, deixou-se dominar por ela.

Bernardo de Claraval (1090-1153) disse: “Não permitam que eu tenha tamanha miséria, pois dar a mim o que desejo, dar a mim o que meu coração almeja, é um dos mais terríveis julgamentos do mundo”.[13]

A moderação é um aprendizado que deve nos acompanhar em toda a nossa vida. Por isso, Jesus nos ensina a começar a disciplinar as nossas orações naquilo que pedimos a Deus, pois somente assim poderemos aprender a estar contentes e a descobrir o quanto Deus nos tem dado.

Paulo, preso, pôde escrever aos filipenses:

Aprendi (manqa/nw)[14] a viver contente (au)ta/rkhj)[15] em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado, como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias já tenho experiência, tanto de fartura, como de fome; assim de abundância, como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece.(Fp 4.11-13).

O mesmo Jesus que, em sua vida terrena, viveu de forma sóbria e modesta é quem nos pedirá conta do uso que fazemos dos recursos que Ele nos confiou.

 

2) Confiança

Os fiéis, em contrapartida, embora vivam uma vida laboriosa, seguem sua vocação com mentes serenas e tranquilas. Assim, as mãos dos fiéis não são ociosas, mas a sua mente descansa na quietude da fé, como se estivessem dormindo. – João Calvino.[16]

Essa petição nos desafia a confiar diariamente no cuidado providente de Deus, nosso Pai.

Essa oração não nos ensina a pedir para um futuro distante e, em geral idealizado,  mas a pedir para as nossas necessidades diárias, para o nosso hoje.

Jesus quer nos ensinar a não ficar ansiosos pelo futuro, diante do desconhecido, antes, a confiarmos inteiramente em Deus, colocando diante dele, em oração, as nossas aspirações e necessidades.

Jesus Cristo, no Sermão do Monte, nos instrui de forma paterna a respeito de algo que fazia parte de sua experiência cotidiana: “Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir (…). Não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (Mt 6.25,34).

Paulo, preso, instrui à igreja de Filipos que sofria perseguição e, ao mesmo tempo, enfrentava dissensões internas:

Não andeis ansiosos de cousa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças. E a paz (ei)rh/nh) de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus. (Fp 4.6-7).

Quando confiamos em Deus e depositamos sobre Ele as nossas incertezas, podemos usufruir da sua paz que guarda a nossa mente e o nosso coração. A paz de Deus não significa, necessariamente, o escape do problema, ou um estado ideal de imperturbabilidade como queriam os gregos,[17] mas, a paz em meio à dificuldade resultante da nossa confiança em Deus. Aqui temos um aprendizado da fé.

No deserto, Deus desafiou o povo a aprender essa lição por meio da administração do maná que lhes era concedido diariamente. Antes mesmo de Deus promulgar o quarto mandamento, Ele ensinou o povo a utilizar bem o seu tempo e a confiar nele.[18]

O texto Sagrado registra a instrução divina: “Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá, e colherá diariamente a porção para cada dia, para que eu ponha à prova se anda na minha lei ou não. Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem, e será dois tantos do que colhem cada dia” (Êx 16.4-5).

Alguns homens, mais “previdentes”, tentaram ir além da ordem divina; guardaram o maná para o dia seguinte. Resultado: deu bicho, apodreceu e fedeu (Êx 16.20).[19]

O desafio de fé proposto por Deus, era para que o povo, manhã após manhã renovasse a sua confiança nele, aprendendo a descansar nas suas promessas, sabendo que Deus não falharia. O caminhar da fé é costumeiramente assim; gradativo, envolvente e ambicioso em sua confiança que cada vez mais se projeta nos braços do Senhor.

Mais tarde, Pedro escreveria às igrejas da Dispersão: “Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pe 5.7). Somos intimados a descansar em Deus, confiantes de que “Assim como nosso Pai nos nutriu hoje, ele não falhará amanhã”.[20]

Comentando o Salmo 3, Calvino ressalta:

Era um sinal de inusitada fé quando, golpeado por tão grande consternação, se aventura a fazer francamente sua queixa a Deus e, por assim dizer, derramar sua alma no seio divino. E certamente que este é o único remédio que pode aplacar nossos temores, a saber, lançar sobre ele todas as preocupações que nos atribulam.[21]

O Catecismo de Heidelberg (1563), assim comenta essa petição:

Digna-te suprir todas as nossas necessidades corporais, a fim de que, por esse motivo reconheçamos que és a única fonte de tudo o que é bom, e que sem tua bênção nem nosso cuidado e trabalho, nem os teus dons podem proporcionar-nos qualquer bem. Consequentemente, que retiremos a nossa confiança de todas as demais criaturas e a ponhamos somente em ti.[22]

Outro ponto relevante é a forma que Deus usa para nos educar. Na realidade, Deus pode  empregar qualquer meio que se harmonize com as suas perfeições para nos sustentar, ou fazer cumprir toda e qualquer de suas promessas. No entanto, ao estabelecer o método que deseja, Deus tem também como objetivo que nossas mentes e corações aprendam a se submeter ao seu modo de agir.

“Por exemplo, comenta Calvino, embora ele possa nutrir-nos sem pão, não obstante sua vontade é que nossa vida seja sustentada por tal provisão. E se a negligenciarmos, e quisermos designar-lhe outro meio de nutrir-nos, tentamos seu poder”.[23]

 

3) Total Dependência

Entre tantas lições que aprendemos com a oração do Pai Nosso,  uma delas é sobre a nossa total e absoluta dependência de Deus.

Há coisas que consideramos tão rotineiras em nossa vida que, salvo em casos especiais, não ocupamos o nosso pensamento com elas. O motivo é simples; as vemos como que estando sob o nosso natural domínio.

Ilustro. Se você tem uma vida estabilizada economicamente: trabalha, ganha o suficiente, tem boa saúde, sua casa, mais de uma fonte de renda, dispõe de um certo conforto, etc., não é comum você se preocupar em demasia com o seu alimento no sentido de ter o suficiente para sua família. Tudo parece tão natural que é quase como respirar – exceto em São Paulo na primeira quinzena de setembro de 2024 –, já que não ficamos contabilizando isso.

Porém, o Senhor nos ensina aqui a pedir o pão. Ele indica que até mesmo aquilo que não faz parte de nossas cogitações mais frequentes, depende de sua provisão. Enfim; todas as coisas estão sob o seu cuidado. Dito isso; prossigamos.

Todos os homens por mais ricos que sejam, dependem entre outras coisas, do solo, água, clima e saúde do corpo. Todos estão sujeitos ao estado geral da economia, juntamente com outros fatores sociais, políticos, etc.

Esses fatos indicam o quanto dependemos de Deus, o Senhor do universo, daquele que tem o domínio sobre todas as coisas. “Do alto de tua morada regas os montes; a terra farta-se do fruto de tuas obras. Fazes crescer a relva para os animais e as plantas para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão”, diz o salmista (Sl 104.13-14).

Paulo dá uma interpretação teológica a esta manifestação provedora de Deus, dizendo: “Contudo não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” (At 14.17).

Dessa maneira, pedir a Deus que nos dê o pão significa recorrer à sua graça, para que nos sustente e não nos deixe perecer. Nessa oração, está implícita a certeza de que a vida pertence a Deus. O cientista pode fazer uma semente sintética, porém, ela não poderá crescer e frutificar, porque não tem vida. Tudo que temos e somos provém dele, por isso a Ele oramos: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”.

Calvino (1509-1564), comentando essa passagem, diz:

Por esta petição, a seu cuidado nos entregamos e a sua providência nos confiamos, para que nos dê alimento, sustente, preserve. Pois, o Pai Boníssimo não desdenha tomar sob Sua proteção e guarda ainda mesmo o nosso corpo, para que a fé nos exercite nestas cousas diminutas, enquanto dele tudo esperamos, até uma simples migalha de pão e uma gota de água.[24]

 

4) Disposição para Trabalhar

Esta oração não serve de pretexto para as pessoas se acomodarem em seus trabalhos – exercendo a sua função sem dedicação, responsabilidade e criatividade – contando irreverentemente com a “providência de Deus”, antes, implica o desejo de trabalhar, usando os recursos que Deus nos tem concedido, rogando, ao mesmo tempo, a bênção de Deus para o nosso trabalho.

A Bíblia é bem explícita quanto à nossa responsabilidade de usar os meios que Deus nos concede para o trabalho, a fim de que com o trabalho de nossas próprias mãos possamos nos sustentar e àqueles que estão sob a nossa guarda.

Pedimos a Deus o “pão nosso” não o “pão do outro”. Assim, somos instruídos a pedir a Deus o suprimento de nossas necessidades com aquilo que é nosso não do outro. Em outras palavras, que Deus nos supra com o fruto de nosso trabalho.

A oração não substitui o trabalho. Aliás, o trabalho pode se constituir em nossa oração se de fato o fizermos para a glória de Deus dentro dos parâmetros bíblicos.

Conforme vimos, aos tessalonicenses Paulo escreve apresentando uma dimensão correta  sobre a nossa responsabilidade de trabalhar:

8 Nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor (ko/poj) e fadiga  (mo/xqoj = um trabalho de difícil execução), de noite e de dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós; 9 não porque não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos exemplo em nós mesmos, para nos imitardes. 10 Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer trabalhar (e)rga/zomai), também não coma. 11Pois, de fato, estamos informados de que, entre vós, há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando (e)rga/zomai); antes, se intrometem na vida alheia. 12 A elas, porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando (e)rga/zomai) tranquilamente, comam o seu próprio pão. 13 E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem. (2Ts 3.8-13).

 

5) Humildade

Essa petição nos ensina também que, apesar de trabalharmos arduamente, sabemos que é Deus quem nos dá o pão. É Ele quem provê a nossa subsistência. É Deus quem nos propicia, de forma muitas vezes imperceptível, as condições para que exerçamos os nossos talentos, ou, em outras circunstâncias, Ele inclina o coração de outras pessoas para nos socorrer nos momentos de maior carência.

Enfim; é Deus quem sacia o nosso coração com o pouco ou com o muito. Sem isso, o pouco seria insuportável e o muito insuficiente. (Fp 4.11-13).

O nosso sustento, seja de que modo for, vem do Senhor, a quem oramos de forma consciente: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”.

Salomão, o rei mais sábio e rico de toda a história de Israel, dá o seu testemunho:

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem. (Sl 127.1-2).

À arrogante igreja de Corinto, Paulo escreve: “Pois quem é que te faz sobressair? e que tens tu que não tenhas recebido? e, se o recebestes, por que te vanglorias, como se o não tivesses recebido?” (1Co 4.7).

Tiago, por sua vez, nos lembra de que “toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes” (Tg 1.17).

Assim, a nossa atitude deve ser de humildade diante de Deus e do nosso próximo, visto que tudo que temos (objetivamente)  e somos (subjetivamente) provêm da misericórdia de Deus (1Co 15.10; 2Co 3.5).

 

6) Generosidade

A oração diz: “Dá-nos” e não “Dá-me”. Aqui, em nossas petições, se incluem as necessidades dos crentes em todo o mundo. Quando assim oramos, evidenciamos que os filhos de Deus suplicam ao Pai pela manutenção de todo o seu Povo espalhado por toda a face da Terra; pedindo a manutenção de Deus para a sua Igreja, que é a família de Deus (Ef 3.15), a “família da fé” (Gl 6.10).

Somos ensinados a não sermos egoístas, dedicando atenção apenas às nossas necessidades que sempre nos soam como mais importantes e prementes.

Jesus nos ensina, ao mesmo tempo, a pedir e interceder; a suplicar a Deus por nós e pelo nosso próximo. Desse modo, temos uma lição de generosidade a ser apreendida, visto que por mais urgentes que sejam os nossos anseios e/ou carências, Jesus nos convida a olhar à nossa volta e a reconhecer que outros homens também têm necessidades que precisam ser atendidas. Por isso, com um coração e mãos generosas,[25] oramos: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. (Veja-se 2Co 8.1-5). Portanto, “quem repete esta petição e pensa só em seu pão, não tem uma concepção real do significado dela”, resume Barclay (1907-1978).[26]

Resumindo: essa petição desafia-nos à moderação, a aprender a viver com o que temos, confiando no cuidado providencial de Deus, em total dependência, usando dos recursos que Ele nos concede, trabalhar de forma digna onde quer que Ele nos coloque, sabendo contudo, que a eficácia do nosso trabalho depende da sua bênção, daí a necessidade de sermos humildes, gratos e generosos.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

______________________________________

[1] Apud Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 40. Citado também em: Leland Ryken, Redeeming the Time: A Christian Approach to Work and Leisure, Grand Rapids, MI.: Baker Books, 1995, p. 104. O erudito missionário Francisco L. Schalkwijk, escreveu com propriedade: “Que bênção: lavar louça ou fazer continhas, lavrar a terra ou servir como deputado, tudo para a glória de Deus! Foi a Reforma que colocou novamente todas as atividades humanas nesse plano elevado, redescobrindo esse ensino bíblico” (Francisco L. Schalkwijk, Meditações de um peregrino, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 166).

[2]D.A. Carson: In: John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 87.

[3]Francis A. Schaeffer, Não há Gente Sem Importância, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 27.

[4] D. M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: FIEL, 1984, p. 355.

[5] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 40.3), p. 216.

[6] Ela é encontrada somente uma vez num papiro do quinto século d.C., com um sentido incerto. (Cf. F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 445; W. Foerster, E)piou/sioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 2, p. 590-591).

[7] Vejam-se, por exemplo: F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 445-446; W. Foerster, E)piou/sioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 590-599; R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Matthew’s Gospel, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, p. 268-269; e)piou/sioj: In: Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament, 5. ed. Chicago: The Chicago Press, 1958, p. 296-297; C. Muller, e)piou/sioj: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-1980, v. 2, p. 31-33; João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2022, v. 1, p. 363-365 [Especialmente a nota 418 acrescentada pelos editores]; J. Jeremias, O Pai-Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo: Paulinas, 1976, p. 43-47; John A. Broadus, Comentário do Evangelho de Mateus, 3. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1966, v. 1, p. 205-206; W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora; ABAP, 1985, p. 103-113;  G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Mateo, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1986, p. 347-348; A.B. Bruce, The Synoptic Gospels, In: W. Robertson Nicoll, ed. The Expositor’s Greek Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 1, p. 120-121; John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3. ed. São Paulo: ABU, 1985, p. 152-153.

[8] João Calvino, As Institutas, I.17.11. Do mesmo modo: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 86-87.

[9] F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 444.

[10] Veja-se a brilhante análise de K. Barth (La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 68ss.).

[11] “Aqui agora consideramos o pobre cesto de pão, as necessidades de nosso corpo e da vida temporal. É palavra breve e simples, mas também abrange muito. Pois quando mencionas e pedes ‘o pão de cada dia’, pedes tudo o que é necessário para que se tenha e saboreie o pão cotidiano, e, por outro lado, também pedes que seja eliminado tudo o que o impede. Deves, por conseguinte, abrir e dilatar bem os pensamentos, não só até o forno ou a caixa da farinha, mas até o vasto campo e a terra toda que produz e nos traz o pão de cada dia e toda sorte de alimentos. Porque se Deus não o fizesse crescer, não o abençoasse e conservasse no campo, jamais tiraríamos pão do forno e nenhum teríamos para pôr na mesa.

“Para sumariá-lo em breves palavras: esta petição quer abranger quanto pertence a toda esta vida no mundo, porque apenas por isso necessitamos de pão cotidiano. Agora, à vida não pertence apenas que o corpo tenha alimento, vestuário e outras coisas necessárias, mas também que seja de tranquilidade e em diário comércio e trato e toda sorte de atividades; em suma, tudo o que se refere às relações domésticas e vizinhais, ou civis e políticas. Pois onde houver obstáculos quanto a essas duas partes, de forma que relativamente a elas as coisas não andem como deveriam andar, aí também está obstaculizado algo que é necessário à vida, de sorte que não se pode conservá-la por tempo dilatado….” (Martinho Lutero, Catecismo Maior: In: Os Catecismos, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, §§ 72-73, p. 467. Veja-se também, João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2022, v. 1, p. 364-366).

[12] “Ainda que o ‘perdão de pecados’ seja preferível ao alimento, da mesma forma que a alma é mais valiosa que o corpo, nosso Senhor começou com o pão e os proventos de uma vida terrena, para que, a partir desse princípio, nos fizesse subir mais alto. Não pedimos que nosso pão diário nos seja dado antes de pedirmos a reconciliação com Deus, como se o alimento perecível do estômago devesse ser considerado mais valioso do que a eterna salvação da alma; mas agimos assim para que subamos, por assim dizer, passo a passo, da terra ao céu” (João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2022, v. 1, p. 362-363).

[13] Apud Jeremiah Burroughs, Aprendendo a estar contente, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1990, p. 28.

[14] Paulo usa o verbo aqui no aoristo indicativo ativo (e)/maqon), referindo-se a um aprendizado já consumado. Ele já passou pelo processo.

[15] A palavra denota a suficiência própria de quem já aprendeu a viver contentadamente com os seus próprios e parcos recursos. Paulo sabia que a sua suficiência vinha de Deus: “Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência (au)ta/rkeia), superabundeis em toda boa obra” (2Co 9.8).

[16] João Calvino, Salmos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2009, v. 4, (Sl 127.2), p. 379.

[17] Veja-se: W. Foerster, Ei)rh/nh: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 2, p. 400-402.

[18] Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria Nele (II): In: Fides Reformata, 4/1 (1999), p. 133-134.

[19]“Eles, porém, não deram ouvidos a Moisés, e alguns deixaram do maná para a manhã seguinte; porém deu bichos e cheirava mal. E Moisés se indignou contra eles” (Êx 16.20).

[20] João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO.: Editora Logos, 2003, Cap. 24, p. 67.

[21]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 3.1-2), p. 82.

[22] Catecismo de Heidelberg, Pergunta 125.

[23]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 106.14), p. 678.

[24]João Calvino, As Institutas, III.20.44.

[25]1Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da Macedônia;  2 porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua generosidade.  3 Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários,  4 pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos.  5 E não somente fizeram como nós esperávamos, mas também deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor, depois a nós, pela vontade de Deus” (2Co 8.1-5).

[26] W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora; ABAP, 1985, p. 110.

 182 total views,  37 views today