Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 44

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5. Culto Espiritual, com arte, inteligência e submissão

Uma firme posição doutrinária é, para uma Igreja, a condição obrigatória para toda manifestação de arte cristã. ‒ Paul Romane Musculus (1906-1987).[1]

Quando Ele [Deus] nos concede talentos, incluindo o talento musical, Ele nos concede, não para que se transforme em ídolo, mas para ser usado para Sua glória” – Frank E. Gaebelein (1899-1983).[2]

Porque o Calvinismo preferiu a adoração de Deus em espírito e verdade à riqueza sacerdotal, ele foi acusado por Roma de ser destituído de uma apreciação pela arte. ‒ Abraham Kuyper.[3]

 

                            A) Música: importância e limites

A música, quer instrumental, quer vocal ou de ambas as formas sempre esteve presente em todas as expressões de cultura humana. “Não há povo antigo no qual não se encontrem manifestações musicais. (…) não existe linguagem mais instintiva, mais espontânea do que a música”, escreve Alaleona (1881-1928).[4]

A música sempre fez parte dos cultos pagãos (Dn 3.4-7).[5] Entendia-se que os deuses gostavam de música, havendo, portanto, uma conexão entre a adoração e a música.[6] A flauta era um dos instrumentos populares, inclusive nos cultos.[7] Sendo facilmente confeccionada. Em geral, estava associada à alegria (Jó 21.12; 30.31; Sl 149.3; Is 30.29; Mt 11.17; Lc 7.32; Ap 18.22),[8] ainda que não especificamente (Mt 9.23).[9]

 

Imaginação pecaminosa e idolatria

Durante os quarenta dias em que Moisés e Josué estiveram no monte Horebe o povo de Israel se corrompeu, financiando com prontidão e generosidade a confecção de um bezerro (touro ainda jovem) de ouro para que se transformasse em seu deus ou, que representasse a Deus.

Vemos aqui a tentativa humana, carnalmente desesperada, de criar os seus próprios deuses, atribuindo-lhes virtudes e poder (Êx 32.1-4).[10] Os sinais da presença do Senhor passaram a ser insuficientes para com esse povo ingrato e mal. A sua imaginação incrédula foi o elemento mais forte em sua atitude.

Mesmo diante do bezerro feito e das palavras:“São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito(Êx 32.4), o povo despertou de sua loucura. Parece que os judeus estavam tão acostumados em vivenciar a prática dos egípicios e namorar com a  dilatria dos cananeus, que agora, num ato talvez acalentado, tornou-se tudo normal para eles. Tornar ao Egito era sempre uma referência em sua memória  espiritual pecaminosa. (At 7.39). A libertação física de um povo é mais fácil do que a extração de ídolos do coração.

Ainda que Arão, um “idólatra relutante”,  tentasse impiamente, associar a adoração pagã com a genuína adoração ao Senhor, havia elementos distintos (Êx 32.5-8).

Quando Moisés e Josué descem do monte Horebe, ouvem cantos. Ambos não souberam identificar. Se Moisés não soube, muito menos Josué que até sugeriu tratar-se de alarido de guerra. Certamente, que algum elemento no ritmo parecia como de guerra.

Moisés, porém, mais experiente, retrucou: não é cântico de vencedores, nem de vencidos. É alarido dos que cantam. O que exatamente era, eles não sabiam, mas era algo diferente (Êx 32.17-20).

Notemos que a música por eles entoada não era algo que se harmonizasse com o cântico religioso de Israel e mesmo com o cântico conhecido (Moisés certamente conhecia bem os ritmos egípcios e judeus ([At 7.22]), havia algo de estranho naquilo tudo. E quando eles chegaram ao local, o povo estava adorando ao bezerro de ouro com muita alegria, leia-se: orgia religiosa idolocêntrica (Êx 32.6,19, 25; At 7.41).[11]

Observemos que há uma diferença fundamental na forma como cantavam, pois Moisés poderia falar: olhe, isso parece com música de Igreja – cometendo aqui um anacronismo – não dá para entender a letra por causa da distância, mas é um cântico de Igreja. O cântico sacro é facilmente identificável. No entanto, nada fora identificado por ambos. Suponho que deveria ser algo alegre, ritmado, uma vez que para guerra canta-se algo que impulsione, estimule para uma batalha. Além disso, a descrição reflete uma reunião festiva com comida, bebida, danças, gritos,  diversão e orgia.[12]  O povo estava satisfeito com o seu deus e com aquela alegre festividade. (Êx 32.6,17-19).

Na realidade o povo em sua idolatria estava em processo criacional de uma forma litúrgica própria à nova adoração ao deus criado: o bezerro de ouro como expressão da realidade espiritual de um povo idólatra: “Nós somos o que adoramos; também somos como adoramos”, conclui Ryken.[13]

Todo o compromisso solenemente assumido há algumas semanas no mesmo lugar, fora esquecido:

3 Subiu Moisés a Deus, e do monte o SENHOR o chamou e lhe disse: Assim falarás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel:  4 Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei a mim.  5 Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha;  6 vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel.  7 Veio Moisés, chamou os anciãos do povo e expôs diante deles todas estas palavras que o SENHOR lhe havia ordenado.  8 Então, o povo respondeu à uma: Tudo o que o SENHOR falou faremos. E Moisés relatou ao SENHOR as palavras do povo. (Êx 19.3-8).

3 Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do SENHOR e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o SENHOR faremos.  4 Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR e, tendo-se levantado pela manhã de madrugada, erigiu um altar ao pé do monte e doze colunas, segundo as doze tribos de Israel.  5 E enviou alguns jovens dos filhos de Israel, os quais ofereceram ao SENHOR holocaustos e sacrifícios pacíficos de novilhos.  6 Moisés tomou metade do sangue e o pôs em bacias; e a outra metade aspergiu sobre o altar.  7 E tomou o livro da aliança e o leu ao povo; e eles disseram: Tudo o que falou o SENHOR faremos e obedeceremos. (Êx 24.3-7).

 

A música como pedagogia de Deus

Positivamente, vemos que Deus confere à música um caráter também pedagógico. Como mestre perfeito, Ele usou desse recurso para ensinar a Lei ao povo:

Escrevei para vós outros este cântico e ensinai-o aos filhos de Israel; ponde-o na sua boca, para que este cântico me seja por testemunha contra os filhos de Israel. (…) Assim, Moisés, naquele mesmo dia, escreveu este cântico e o ensinou (למד)(lamad) aos filhos de Israel. (Dt 31.19,22/Dt 32.1-47).

Deus prescreve no Antigo Testamento o modo como deseja ser adorado e, ao mesmo tempo, adverte ao povo de Israel quando se dirigia a Canaã, para que destruísse todos os lugares de culto pagão (Dt 7.5, 16;12.2,3, 29-31/Dt 16.21-17.1-7).

Israel deveria se guardar de aprender as práticas pagãs dos povos estrangeiros: “Quando entrares na terra que o SENHOR, teu Deus, te der, não aprenderás (למד)(lamad) a fazer conforme as abominações daqueles povos” (Dt 18.9). (Ver também Dt 20.18).

A integridade do coração estava relacionada também à forma. A hipocrisia seria tomar a forma correta sem coração sincero. Um culto que vise apenas cumprir externamente a lei de Deus ou, obter favores de Deus, é profundamente desolador para o Senhor (Is 1.10-17; 29.13; Ml 1.10).

A nossa adoração não tem nenhum valor intrínseco. Por mais belo e harmonioso que seja o nosso culto, se não proceder de um coração contrito diante de Deus, de nada adiantará; Deus dele não se agradará. Deus é justo; não é subornável.[14]

No Novo Testamento, Estevão interpretando de modo inspirado a história de seu povo, diz que Israel durante os quarenta anos no deserto jamais aprendeu a adorar a Deus, ainda que usasse o seu nome:

 39 A quem nossos pais não quiseram obedecer; antes, o repeliram e, no seu coração, voltaram para o Egito,  40 dizendo a Arão: Faze-nos deuses que vão adiante de nós; porque, quanto a este Moisés, que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu.  41 Naqueles dias, fizeram um bezerro e ofereceram sacrifício ao ídolo, alegrando-se com as obras das suas mãos.  42 Mas Deus se afastou e os entregou ao culto da milícia celestial, como está escrito no Livro dos Profetas: Ó casa de Israel, porventura, me oferecestes vítimas e sacrifícios no deserto, pelo espaço de quarenta anos,  43 e, acaso, não levantastes o tabernáculo de Moloque e a estrela do deus Renfã, figuras que fizestes para as adorar? Por isso, vos desterrarei para além da Babilônia. (At 7.39-43).

Recordo-me do testemunho do guitarrista Jimi Hendrix (1942-1970), na década de 1960, na revista Life (03/10/69), falando sobre o efeito hipnotizante do rock. A batida era constante para que facultasse o sujeito ser hipnotizado por aquilo, e quando ele é dominado por aquela batida fica mais fácil assimilar a mensagem.

No rock, a força está na batida. Repare, dentro da perspectiva Reformada você evita elementos externos estranhos ao culto para supostamente aplicar a mensagem. É claro, você usa dos recursos bíblicos que Deus lhe dá, mas é o Espírito quem age. Então, todo recurso para fixar a mensagem deve obedecer a padrões bíblicos e estar adequadamente harmonizado ao culto. Emoção que não é produzida pela Palavra, não se harmoniza com o culto porque na realidade, não é teocentricamente produzida e dirigida.

Agostinho (354-430), comentando de forma belíssima o salmo 148, diz:

Sabeis o que é hino? É um cântico com louvor a Deus. Se louvas a Deus sem canto, não é hino. Se cantas e não louvas a Deus, não é hino; se louvas outra coisa não pertencente ao louvor de Deus, apesar de cantares louvores, não é um hino. O hino, pois, consta de três coisas: canto (canticum), louvor (laudem), de Deus. Portanto, louvor a Deus com cântico chama-se hino.[15]

No culto, a música deve ser entendida, não, simplesmente, como meio de impressão – que age em nosso corpo, emoções e intelecto – mas também e, principalmente, de expressão, como veículo para o texto.[16] Portanto, mais do que um agente de preparação para o culto, ela é também uma oferta que deve ser apresentada com fé.[17]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Paul Romane Musculus, La Prière dês Mains: L’Église Réformée et L’Art, Paris: Editions « Je Sers » 1938, p. 191.

[2]Frank E. Gaebelein, The Christian and Music. In: Leland Raken, ed. The Christian Imagination: essays on literature and the arts, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1986, p. 443.

[3]Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 152.

[4]Domingos Alaleona, História da Música, São Paulo: Ricordi, (1972), edição revista e atualizada pelo tradutor, João C. Caldeira Filho, 1984, p. 38. Isso não significa que concordemos com o autor em sua proposição de que “a linguagem musical, em forma rudimentar, precedeu a linguagem propriamente dita” (p. 38) e o seu espírito antirreligioso em geral. Na realidade, as Escrituras nos dizem que após Deus criar o homem e o colocar no jardim do Éden para o cultivar e guardar (Gn 2.15), incumbiu-lhe de dar nome aos animais (Gn 2.19-20).

[5]4Nisto, o arauto apregoava em alta voz: Ordena-se a vós outros, ó povos, nações e homens de todas as línguas: 5 no momento em que ouvirdes o som da trombeta, do pífaro, da harpa, da cítara, do saltério, da gaita de foles e de toda sorte de música, vos prostrareis e adorareis a imagem de ouro que o rei Nabucodonosor levantou. 6 Qualquer que se não prostrar e não a adorar será, no mesmo instante, lançado na fornalha de fogo ardente. 7 Portanto, quando todos os povos ouviram o som da trombeta, do pífaro, da harpa, da cítara, do saltério e de toda sorte de música, se prostraram os povos, nações e homens de todas as línguas e adoraram a imagem de ouro que o rei Nabucodonosor tinha levantado” (Dn 3.4-7).

[6] Veja-se: Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, Washington, D.C.: National Association of Pastoral Musicans, 1983, p. 1ss. e Parcival Módolo, “Impressão” ou “Expressão” O Papel da Música na Missa Romana Medieval e no Culto Reformado: In: Teologia e Vida, São Paulo: Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, 1/1 (2005), p. 114.

[7]Cf. Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, p. 2ss.

[8] “Visto que as flautas eram muito fáceis de se fazer, e podiam ser construídas de uma variedade de materiais – juncos, canas, ossos etc. – elas eram muitos populares. Segundo os quadros da Antiguidade o revelam, tais flautistas eram amiúde acompanhados de palmas” (William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 9.23), p. 612). Para uma visão panorâmica do uso de flauta e suas variações, veja-se: Stanley Sade, ed. Dicionário Grove de Música: Edição concisa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, p. 331-333

[9] “Tendo Jesus chegado à casa do chefe e vendo os tocadores de flauta e o povo em alvoroço, disse: Retirai-vos, porque não está morta a menina, mas dorme….” (Mt 9.23-24).

[10]1Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão e lhe disse: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe terá sucedido.  2 Disse-lhes Arão: Tirai as argolas de ouro das orelhas de vossas mulheres, vossos filhos e vossas filhas e trazei-mas.  3 Então, todo o povo tirou das orelhas as argolas e as trouxe a Arão.  4 Este, recebendo-as das suas mãos, trabalhou o ouro com buril e fez dele um bezerro fundido. Então, disseram: São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito(Êx 32.1-4).

[11] 6No dia seguinte, madrugaram, e ofereceram holocaustos, e trouxeram ofertas pacíficas; e o povo assentou-se para comer e beber e levantou-se para divertir-se. (…) 19Logo que se aproximou do arraial, viu ele o bezerro e as danças; então, acendendo-se-lhe a ira, arrojou das mãos as tábuas e quebrou-as ao pé do monte; (…) 25Vendo Moisés que o povo estava desenfreado, pois Arão o deixara à solta para vergonha no meio dos seus inimigos” (Êx 32.6,19,25). 41Naqueles dias, fizeram um bezerro e ofereceram sacrifício ao ídolo, alegrando-se com as obras das suas mãos. 42Mas Deus se afastou e os entregou ao culto da milícia celestial, como está escrito no Livro dos Profetas: Ó casa de Israel, porventura, me oferecestes vítimas e sacrifícios no deserto, pelo espaço de quarenta anos, 43e, acaso, não levantastes o tabernáculo de Moloque e a estrela do deus Renfã, figuras que fizestes para as adorar? Por isso, vos desterrarei para além da Babilônia” (At 7.41-43).

[12] Sobre à possibilidade dessa divertida festa ser marcada por orgia – no que não há unanimidade entre estudiosos −, vejam-se a título de amostragem, alguns argumentos em: Victor P. Hamilton,  Comentário do Antigo Testamento – Êxodo, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, (Êx 32.1-6), p. 744-745; Philip G. Ryken, Estudos bíblicos expositivos em Êxodo, São Paulo: Cultura Cristã, 2022, (Êx 32.1-6), p. 332; J. Barton Payne, tsãhaq: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1280-1281; Leslie C. Allen, Shq: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 792-793.

[13]Philip G. Ryken, Estudos bíblicos expositivos em Êxodo, São Paulo: Cultura Cristã, 2022, (Êx 32.1-6), p. 329. “O que nossos pecados externos revelam é a verdadeira condição interna do nosso coração. O pecado não é tanto o que fazemos, mas o que somos” (Philip G. Ryken, Estudos bíblicos expositivos em Êxodo, (Êx 32.1-6), p. 326).

[14] Veja-se: João Calvino, Série Comentários Bíblicos – Gênesis Volume 1, Recife, PE: CLIRE, 2018, (Gn 4.5), 173ss.

[15]Stº Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1998, v. 3, (Sl 148.17), p. 1142.

[16]Ver: Parcival Módolo, “Impressão” ou “Expressão” O Papel da Música na Missa Romana Medieval e no Culto reformado: In: Teologia e Vida, São Paulo: Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, 1/1 (2005), p. 120-125.

[17]Cf. Harold M. Best, Christian Responsibility in Music. In: Leland Raken, ed. The Christian Imagination: essays on literature and the arts, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1986, p. 407.

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