G) Teologia do culto ou culto da experiência
Pelo que estudamos até aqui, torna-se evidente que a Igreja cristã ao longo da história, expressou a sua fé de modo vivo e vibrante por meio dos salmos e hinos, elaborando a sua teologia de forma clara e simples, a fim de que todos pudessem entendê-la e cantá-la.[1] A música foi empregada, não simplesmente, pela música, antes, de forma tal, que estivesse a serviço da mensagem, da letra, do próprio evangelho.[2]
A beleza é uma questão de harmonia e proporções. A origem do senso de beleza está em Deus. Ainda que possamos elaborar um livro, uma peça, um quadro ou música de qualidade duvidosa com o objetivo de distrair, comover ou entreter, não podemos simplesmente apresentar isso a Deus como expressão de culto, visto que é Deus mesmo quem estabelece o modo como deve ser adorado.
A Confissão de Westminster (1647) capta bem isso ao dizer:
O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada, que Ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras. (XXI.1).[3]
Adorar a Deus de modo não prescrito em sua Palavra é um ato idólatra, pois deste modo, adoramos na realidade a nossa própria vontade e gosto;[4] tornamo-nos “autoadoradores” (Hug Binning). Aqui há uma inversão total de valores: em nome de Deus buscamos satisfazer os nossos caprichos e desejos.[5] Deus se tornou um mero instrumento para a expressão de nossa vontade.
A lógica dessa atitude é a seguinte: desde que estejamos satisfeitos, descontraídos e leves, é isso o que importa. Quem assim procede, já recebeu a sua recompensa: a satisfação momentânea do seu desejo pecaminoso, que consiste em buscar prioritária e simplesmente sua satisfação.[6]
O culto a Deus é caracterizado pela submissão às Escrituras: “É dever de todo crente apresentar seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, como indica as Escrituras. Nisto consiste a verdadeira adoração”, interpreta Calvino.[7]
Em outros lugares Calvino (1509-1564) nos adverte quanto à tentativa de adorar a Deus conforme o “senso comum”:
Pelo que, nada de surpreendente, se o Espírito Santo repudie como degenerescências a todos os cultos inventados pelo arbítrio dos homens, pois que em se tratando dos mistérios celestes, a opinião humanamente concebida, ainda que nem sempre engendre farto amontoado de erros, é, não obstante, a mãe do erro.[8]
O culto que não tem uma distinta referência à Palavra outra coisa não é senão uma corrupção das coisas sacras.[9]
Deus só aceita a aproximação daqueles que o buscam com sincero coração e de maneira correta.[10]
O culto reflete a nossa maneira de perceber a Palavra de Deus, visto que no culto respondemos com fé em adoração e gratidão a Deus.[11] O nosso responder revela a nossa teologia.[12]
Há uma conexão iluminadora. A nossa adoração é a nossa resposta a Deus conforme o percebemos em Cristo partindo das Escrituras e, concomitantemente, esta compreensão, que nada mais é do que a nossa teologia, é impactada no ato de culto.[13]
O culto reflete a nossa teologia e, ao mesmo tempo, a ilumina, vitaliza de forma contínua a nossa reflexão teológica. A pura reflexão sem culto determinará uma fria esterilidade “acadêmica”. A adoração sem reflexão redundará no distanciamento da plenitude da revelação bíblica tendendo ao paganismo, à criação de um deus fabricado pela nossa experiência induzida pelos nossos desejos, não das Escrituras.
É impossível uma genuína teologia bíblica divorciada de uma adoração bíblica; a chamada “flexibilidade litúrgica” nada mais é do que uma “flexibilidade teológica” que envolverá sempre uma “teologia” de remendos, distante da plenitude da revelação bíblica, em acordo, quem sabe, com a cultura que nos circunda.
Horton, acertadamente, escreve:
Não há nada de errado com a arte que apela aos sentimentos e à imaginação, mas há muito de errado com um culto motivado por sentimentos e imaginação.
Continua:
Não podemos adorar a Deus com as nossas próprias opiniões ou emoções; nosso culto (que inclui nossa música) deve ser rigorosamente verificado por sua integridade teológica. Não é uma apresentação para divertir.[14]
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Veja-se: Ralph P. Martin, Adoração na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 63-64.
[2] Veja-se: Parcival Módolo, “Impressão” ou “Expressão” O Papel da Música na Missa Romana Medieval e no Culto reformado: In: Teologia e Vida, São Paulo: Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, 1/1 (2005), p. 111-128.
[3]Vejam-se: Catecismo Maior de Westminster, Perg. 109; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora Os Puritanos, 1999, Cap. XXI, p. 369. “Deus em muitas passagens proíbe qualquer novo culto desprovido da sanção da sua Palavra, e declara-Se gravemente ofendido pela presunção de tal culto inventado, ameaçando-o de severa punição….” (John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 218).
[4]Veja-se: J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 37; Paulo Anglada, O Princípio Regulador do Culto, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (1998), p. 28ss.
[5]Calvino pergunta: “Que pecado cometemos se não queremos aceitar que a maneira legítima de servir a Deus seja ordenada pelo capricho dos homens, o que Paulo ensinou ser intolerável?” (João Calvino, As Institutas, IV.10.9).
[6]Ver: João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 12.1), p. 424-425; (Rm 5.19), p. 198; John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, v. 9), 1996 (reprinted), (Jr 7.31), p. 414; João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.6), p. 305-306; John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 21; João Calvino, As Institutas, I.5.13; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 50.5), p. 403.
[7] João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 29.
[8] João Calvino, As Institutas, I.5.13. “Portanto, uma vez que, de seguir-se na adoração de Deus, nimiamente fraco e frágil vínculo da piedade seja ou a praxe da cidade, ou o consenso da antiguidade, resta que o próprio Deus dê do céu testemunho de Si” (J. Calvino, As Institutas, I.5.13).
[9] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 50.5), p. 403.
[10] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 50.23), p. 420. Horton está correto ao dizer: “É Deus, e não os de fora da igreja, que nos dá o modelo de culto” (Michael S. Horton, O Cristão e a Cultura, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 82). Na mesma linha escreve MacArthur: “As igrejas planejam seus cultos de adoração para servir aos ‘sem-igrejas’. Os produtores cristãos imitam a coqueluche mundana do momento em termos de música e entretenimento. Os pregadores se sentem aterrorizados de que a ofensa do evangelho possa fazer alguém se voltar contra eles; então deliberadamente omitem partes da mensagem que o mundo pode não se agradar” (John MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 13). À frente: “A busca pela aprovação do mundo é nada mais, nada menos que adultério espiritual” (John MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica, p. 14).
[11] Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 56.12), p. 503-504; As Institutas, II.8.16. O princípio de que devemos ser agradecidos a Deus considerando os seus feitos para conosco, é enfático no pensamento de Calvino: “Depois de Deus nos conceder gratuitamente todas as coisas, ele nada requer em troca senão uma grata lembrança de seus benefícios” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 6.5), p. 129). “Sempre que Deus manifesta sua liberalidade para conosco, também nos encoraja a render-lhe graças; e prossegue agindo em nosso favor de forma semelhante quando vê que somos gratos e cônscios do que ele nos tem feito” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 40.9), p. 231). “Embora Deus de forma alguma careça de nossos louvores, contudo sua vontade é que este exercício, por diversas razões, prevaleça em nosso meio” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 40.9), p. 232).
[12] “O culto reflete a teologia eclesiológica e deve marcar a fronteira entre o mundano concupiscente e o sagrado espiritualizado” (Onezio Figueiredo, Culto (Opúsculo II), São Paulo: 1997, p. 25).
[13] Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 40-41.
[14]Michael S. Horton, O Cristão e a Cultura, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 92.
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