8. A Reforma e a Educação[1]
A influência da Reforma sobre a cultura não foi reservada a uma elite, mas envolveu todas as pessoas. – Francis A. Schaeffer.[2]
Pode-se dizer que, com o protestantismo, afirmam-se em pedagogia o princípio do direito-dever de todo cidadão em relação ao estudo, pelo menos no seu grau elementar, e o princípio da obrigação e da gratuidade da instrução, lançando-se as bases para a afirmação de um conceito autônomo e responsável de formação, não estando mais o indivíduo condicionado por uma relação mediata de qualquer autoridade com a verdade e com Deus. − Franco Cambi.[3]
O que é certo, é que a aprendizagem generalizada da leitura e da língua materna nos protestantes impeliu os católicos à imitação: A Reforma tinha transformado a pedagogia. – Marcelle Denis (1918-2018).[4]
A. O Significado da Educação
1) O Homem como ser social
O historiador britânico contemporâneo Peter Burke assim se refere à sociedade: “O termo [sociedade] é uma abreviação da estrutura econômica, social e política, uma estrutura invisível que se revela no padrão das relações sociais características de um determinado lugar e momento”.[5]
O homem é um indivíduo e ao mesmo tempo um ser social. Nele, coexiste esta dialética de autonomia ontológica e, concomitantemente, de ser membro de uma comunidade, de um organismo social.[6]
O homem não foi criado para viver sozinho, isolado, mas em sociedade. Nas Sagradas Escrituras, encontramos a constatação de Deus a esse respeito referindo-se a Adão: “não é bom que o homem esteja só: far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea” (Gn 2.18).
Aristóteles (384-322 a.C.) estava correto ao afirmar que o homem é um ser social.[7] Do mesmo modo, entre outros,[8] asseveraram Lactâncio (260-330)[9] e Calvino (1509-1564): “O homem foi formado para ser um animal social”.[10]
O homem, de fato, foi criado por Deus para viver em companhia de seus semelhantes, mantendo uma relação de ideias, valores e sentimentos. Nesse sentido, concordo com a afirmação de Berger (1929-2017) e Luckmann (1927-2016) de que o homem “nasce com a predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade”.[11]
A Socialização
Assim sendo, o homem não nasce membro da sociedade mas, predisposto essencialmente a ela.
Berger (1929-2017) escreveu:
A sociedade existia antes que o indivíduo nascesse, e continuará a existir após a sua morte. Mais ainda, é dentro da sociedade, como resultado de processos sociais, que o indivíduo se torna uma pessoa, que ele atinge uma personalidade e se aferra a ela, e que ele leva adiante os vários projetos que constituem a sua vida. O homem não pode existir independentemente da sociedade.[12]
“O indivíduo isolado é uma ficção”, resumem Krech (1909-1977) e Crutchfield (1912-1977). [13] A trajetória do processo de ingresso na sociedade envolve três elementos: a exteriorização, a objetivação e a interiorização.[14] Esse caminho social é chamado de “Socialização” e, pode ser definido como “O processo pelo qual uma pessoa internaliza as normas do grupo em que vive, de modo que surja um ‘eu’ distinto, único para um dado indivíduo” Horton e Hunt [1912-1994]).[15]
Construção Social
Como a sociedade é composta de homens, por isso mesmo é que ele não é apenas um espectador passivo, ou um calouro social que em meio aos trotes sociais, tenta se “enturmar”. Na realidade ele é o seu agente; agente de formação e de transformação.
A sociedade é um produto humano, mesmo que paradoxalmente, em muitos momentos, possa nos parecer desumana: o mundo desumano é produto da raça humana!
A desumanização do homem começa pelo seu rompimento com Deus. Quando ele distanciou-se de Deus supostamente pensando em si, se perdeu. Queria dominar todas as coisas e saber igual a Deus. Descobriu apenas a sua nudez material. Acontece que quando perdemos a Deus como referência absoluta nos perdemos em relação a nós mesmos e em relação a todas as demais relações. O homem agora passou a ser dominado pelo que deveria dominar.[16]Perdeu o sentido teocêntrico de sua humanidade, tornou-se desumano. Trágico e triste destino.
A dialética do fenômeno social se manifesta nessa correlação: ao mesmo tempo que a sociedade com os seus valores, agendas e praxes é uma construção humana, essa construção “retroage continuamente sobre o seu produtor”.[17] E ele, por sua vez, a aperfeiçoa. Por isso a palavra de Paulo, falando de transformação (metamorfo/omai),[18] não de acomodação (susxhmati/zomai)[19] aos valores deste mundo (Rm 12.2).
O homem como construtor do mundo social, sente a necessidade de legitimá-lo por meio da sua explicação a fim de justificá-lo às gerações mais jovens que serão assim socializadas. A legitimação diz ao indivíduo por que deve fazer isto ou aquilo e, também, porque as coisas são o que são, desta forma, nas instituições, o “conhecimento” precede os “valores”.[20]
A socialização faz com que o indivíduo interiorize “a realidade social” – que lhe é transmitida como “realidade objetiva” – e ao mesmo tempo, a perpetue por intermédio de sua exteriorização. A interiorização constitui o fundamento para a compreensão do outro como meu semelhante, e para a apreensão do mundo como realidade social dotada de sentido, ingressando assim, na sociedade.
Em termos sociológicos, temos visto que os valores sociais são criados pelo próprio homem. O curioso é que ao mesmo tempo em que ele constrói a realidade social, sente-se seu escravo, interiorizando – nem sempre conscientemente – o que ajudou a construir e contribui para perpetuar. Em outras palavras: a chamada “realidade objetiva” adquire na visão do homem socializado, a condição de “verdade”, e passa a fazer parte da sua “consciência subjetiva”. Ou seja, as coisas são assim porque são, não poderiam ser diferentes, porque o real esgota toda e qualquer possibilidade. Assim, somos induzidos a pensar e a justificar tal raciocínio.
É, justamente nesse ponto, como fica evidente, onde se encontra um caminho fértil para a manipulação do “real” e do “concreto”. A formação da “opinião”, que assume o sabor de “dogma”, norteando toda a nossa cosmovisão, a nossa percepção e, consequentemente, a interpretação da realidade.
O que acontece com demasiada frequência, é que alguns ideólogos vendem uma imagem do mundo supostamente objetiva, ou, com mais perspicácia, dizendo-se subjetiva a fim de adquirir por uma certa teimosia dos seus ouvintes, um tom objetivo, para que por meio da interiorização, amiúde inconsciente, ajudemos a construir pelo nosso comportamento e valores, algo que julgamos ter aprendido do “real”. Assim, contribuímos para tornar real o ideal (algo que estava apenas no âmbito de ideia), pensando ingenuamente, que tínhamos nos atualizado, “assimilando o real”. No caso, fomos o agente inocente na construção do real que nem sempre é apreciável ou desejado.
Devemos nos lembrar de que a nossa compreensão passa por diversas variáveis envolvendo as mediações das visões que temos ou que nos são dadas pelo meio em que vivemos.
É oportuna a observação de Sowell
Seria bom poder dizer que poderíamos prescindir completamente de visões e lidar somente com a realidade. Porém essa pode ser a visão mais utópica entre todas. A realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente. Visões são como mapas que nos guiam através de um emaranhado de complexidades desconcertantes.[21]
Devemos entender que sendo Deus o autor e sustentador de toda a realidade, é Ele quem a define e a interpreta. A nossa compreensão é sempre interpretada.[22]
No entanto, diante do Absoluto, todas as perspectivas e interpretações se dissolvem já que toda verdade está em Deus e, portanto, a sua “interpretação” é a única absolutamente correta e exaustiva.[23]
Resumindo: Nesse tópico vimos como os seres humanos constroem e legitimam a realidade social, que é transmitida às novas gerações como realidade objetiva durante a socialização. Assim, “realidade objetiva” é internalizada e perpetuada pelos indivíduos, adquirindo um status de verdade em suas consciências subjetivas, o que pode levar à manipulação da percepção da realidade. Destacamos que a compreensão humana é influenciada por diversas variáveis e mediações. No entanto, somente Deus, como autor e sustentador de toda a realidade, tem a interpretação absolutamente correta e exaustiva da verdade.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Este assunto é tratado com maior amplitude em meu livro, Introdução à Educação Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2013.
[2] Francis A. Schaeffer, Como Viveremos? São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 56.
[3] Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo: Editora UNESP., 1999, p. 248.
[4]Marcelle Denis, A Reforma e a Educação: In: Gaston Mialaret; Jean Vial, dirs. História Mundial da Educação, Porto: RÉS-Editora, [s.d.], v. 2, p. 193.
[5]Peter Burke, O Renascimento Italiano: Cultura e sociedade na Itália, São Paulo: Nova Alexandria, 1999, p. 10.
[6]Veja-se: Johannes Hessen, Filosofia dos Valores, 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1980, p. 246.
[7]Aristóteles, A Política, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, [s.d.], I.1.9.
[8]Aquino, escreveu: “O homem é naturalmente um animal social” (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2001, v. 2, IV.1.96.4.3. p. 668). Veja-se também: G.W. Leibniz, Novos Ensaios, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 19), III.1.1. p. 167.
[9]Veja-se: Lactantius, The Divine Institutes, VI.10: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 7, p. 173.
[10]John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.18), p. 128. Entendendo que o princípio de que não seja bom que o homem viva sozinho não se restringe a Adão, continua: “Mas ainda que Deus declarasse, no que respeita a Adão, que não lhe seria proveitoso viver sozinho, contudo não restrinjo a declaração unicamente à sua pessoa, mas, antes, a considero como sendo uma lei comum da vocação do homem, de modo que cada um deve recebê-la como dita a si próprio: que a solidão não é boa, excetuando somente aquele a quem isenta como que por um privilégio especial” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, (Gn 2.18), p. 128). Em outro lugar: “O homem é um animal social de natureza, consequentemente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, observamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas, II.2.13). Veja-se: Thomas F. Torrance, Calvin’s Doctrine of Man, Eugene, OR.: Wiph and Stock Publishers, 1997, p. 45.
[11]Peter L. Berger; Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, 5. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1983, p. 172.
[12]Peter L. Berger, O Dossel Sagrado: Elementos para uma teoria Sociológica da Religião, São Paulo: Paulinas, 1985, p. 15. Veja-se também: David Krech; Richard S. Crutchfield, Elementos de Psicologia, São Paulo: Pioneira, 1963, v. 2, p. 363.
[13]David Krech; Richard S. Crutchfield, Elementos de Psicologia, v. 2, p. 364.
[14] Cf. P.L. Berger, O Dossel Sagrado, p. 16ss; P.L. Berger; T. Luckmann, A Construção Social da Realidade, p. 173ss.
[15]Paul B. Horton; Chester L. Hunt, Sociologia, São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1980, p. 77. Em termos mais simples: “O processo de assimilação dos indivíduos aos grupos sociais” (Socialização: In: Raymond Boudon; François Bourricaud, Dicionário Crítico de Sociologia, São Paulo: Ática, 1993, p. 516). Vejam-se, também: L. A. Giani, Sociologia, 3. ed. Rio de Janeiro: Livros do mundo Inteiro, 1973, p. 43-44; M.A. Coulson; D.S. Riddell, Introdução Crítica à Sociologia, 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 107ss; Guy Rocher, Sociologia Geral, Lisboa: Editorial Presença, (1986), v. 2, p. 12ss.
[16]“Sempre que o homem é subjugado pelas coisas que deveria dominar, torna-se desumano” (Hans W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, 2. ed. São Paulo, SP.; São Leopoldo, RS: Loyola; Sinodal, 1983, p. 291)
[17] P. Berger, O Dossel Sagrado, p. 15.
[18] * Mt 17.2; Mc 9.2; 2Co 3.18.
[19] O imperfeito precedido de uma negativa, indica que a ação costumeira deve ser interrompida ou descontinuada, se moldando a um novo modelo. (Além daqui aparece apenas em 1Pe 1.14).
[20] P. Berger; T. Luckmann, A Construção Social da Realidade, p. 129.
[21]Thomas Sowell, Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas, São Paulo: É Realizações, 2012, p. 17.
[22] Veja-se: Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 16-17.
[23] “Visto que Deus é o autor da realidade, é a interpretação dele que devemos procurar” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 17).
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