A Palavra de Deus, a vida, o tempo e a eternidade
A própria Escritura é a única competente para julgar a nossa doutrina da Escritura. − J.I. Packer.[1]
Antes mesmo do liberal abrir a Bíblia para ver o que ela diz, ele está em princípio comprometido em explicar os milagres dela − seja como um entendimento equivocado de eventos naturais, ou como representações exageradas/míticas construídas sobre tradições humanas fluídas. − Vern S. Poythress.[2]
O fato de que as Escrituras apresentam em si mesmas numerosas objeções e em muitos aspectos não dão a impressão de inspiração absoluta, não milita contra o fato de que todo esse trabalho espiritual foi controlado e dirigido pelo Espírito Santo, pois as Escrituras tinham de ser construídas de maneira a deixar espaço para o exercício da fé. As Escrituras não foram feitas com a intenção de serem aprovadas por julgamento crítico aceitas sobre esse fundamento. Isso eliminaria a fé. A fé se firma diretamente com a integridade de nossa personalidade. Para a fé na Palavra, as Escrituras não devem nos alcançar em nosso pensamento crítico, mas na vida da alma. Crer nas Escrituras é um ato de vida do qual vocês, ó, homens sem vida, não são capazes, a menos que o Vivificar, o Espírito Santo, os capacite! − Abraham Kuyper.[3]
A Bíblia exige uma leitura sobrenatural, porque ver a glória divina em palavras humanas não é a maneira comum de lermos um livro. − John Piper.[4]
A história do mundo, sem um quadro interpretativo consistente – conforme o que nos dá as Escrituras – carece de sentido, isto porque ela permanece como uma sucessão de fatos que se amontoam sem nenhum sentido aparente, tendo apenas como elemento orientador a maldade e a ganância humanas, que realmente se sobressaem em toda a história.
Parece ser esta a constatação do poeta Drummond de Andrade (1902-1987), em entrevista publicada na revista Veja: “Nunca entendi bem o mundo, acho o mundo um teatro de injustiças e de ferocidades extraordinárias”.[5]
O poeta não deixa de ter alguma razão. Contudo, o problema maior está na falta da visualização do todo: de um lado, sabemos que a história não pode ser compreendida sem a consideração da Queda,[6] do outro, não poderemos entendê-la sem a certeza de que Deus a dirige:[7] “A história não saiu das mãos de Deus”, interpreta corretamente Lloyd-Jones (1899-1981).[8]
A primeira percepção, que talvez seja a mais evidente – ainda que não em termos totalmente bíblicos –, conduz o homem à angústia e desespero; a realidade passa a não fazer mais sentido, senão enquanto sucessão de momentos que devemos “bem” aproveitar antes que evaporem… Aí está, segundo nos parece, um dos problemas do homem de todos os tempos, porém especialmente dos filhos de uma sociedade secularizada: a ausência de significado fora do “aqui” e “agora”, que lhe escapa desesperadoramente. “A secularização penaliza ao homem com a perda do significado da vida”, comenta van Riessen (1911-2000) [9]
Conhecimento e significado
Por vezes pensamos que o nosso problema está na necessidade de mais informação e atualização; queremos uma tecnologia melhor e mais sofisticada a começar pelo celular. De fato, pode ser que eventualmente isso nos faça falta assim. Porém, a questão que mais nos angustia é a questão do significado; o sentido da vida. As informações podem ser importantes porém, elas não podem ir além de seus limites. Elas não tem compromissos além de suas fronteiras de informar. O mais importante está no que fazemos com elas. Qual o sentido do que sabemos?
Normalmente o conhecimento corre à frente da sabedoria, por isso o mal uso do conhecimento. O sentido e a ética desse conhecimento extrapolam ao alcance da própria ciência. A ciência traz informações, mas, não sentido ou ética. Por isso, com frequência, não sabemos bem o que fazer com o conhecimento.[10]
A droga que alivia o sofrimento é a mesma que causa dependência. A tecnologia que pode trazer grande conforto para a sociedade é a mesma que pode construir uma bomba que mata; a seringa que inocula o antídoto contra um terrível veneno que seria fatal a uma criança, é o a mesma que introduz a droga em um jovem dependente químico.
McGrath comenta:
Muitos consideram intolerável o pensamento de um mundo sem sentido. Se não há sentido, então não há nenhum propósito na vida. Vivemos em uma época na qual o crescimento da internet tornou mais fácil que nunca a ter acesso à informação e acumular conhecimento. Mas informação não é a mesma coisa que sentido, e conhecimento não é a mesma coisa que sabedoria. Muitos se sentem engolidos por um tsunami de fatos no qual não conseguem encontrar sentido.[11]
Continua McGrath em outro lugar:
Por que alguém na iminência de cometer suicídio abaixaria o revólver ao ouvir que o total é maior do que a parte ou jogaria fora o cianeto na pia ao ouvir que 2 + 2 = 4? Essas afirmações podem estar de acordo com os fatos. Elas são, contudo, existencialmente insignificantes, nada tendo a dizer sobre as questões mais profundas da mente humana ou dos anelos do coração humano.[12]
A Palavra e o sentido de todas as coisas
O fato, é que somente Deus por meio de sua Palavra pode conferir ordem e estrutura ao aparente caos; à paisagem da história e vida humana. Conhecimentos verdadeiros não são necessariamente significativos em momentos extremos da vida.
O escritor da Epístola aos Hebreus declara que “A Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb 4.12). Ela não é uma verdade morta, que desperta curiosidade apenas por fazer parte do ossuário, das relíquias, da arqueologia ou da historiografia, sendo estudada unicamente como um exercício de reflexão histórica para a nossa mera curiosidade, ou, quem sabe, para entendermos como viviam os povos na Antiguidade. Não!
A Palavra de Deus é uma verdade viva, que tem a mesma vivacidade de quando foi revelada por Deus aos seus servos, que a registraram inspirados pelo Espírito Santo. Ela continua com a mesma eficácia para os questionamentos existenciais do homem moderno. Ele continua sendo o poder de Deus (Rm 1.16). Essa Palavra confere sentido à nossa vida.
Jesus Cristo, a Palavra encarnada, nos diz: “Eu sou a luz (fw=j) do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz (fw=j) da vida” (Jo 8.12/Is 49.6).[13]
Somente a Palavra de Deus pode transmitir a alegria real e duradoura ao nosso coração. Ela dispersa as nuvens de incertezas e contradições de uma sociedade pervertida, nos mostrando os verdadeiros valores. “A fé cristã nos permite ver padrões neste caos aparente do nosso mundo”, enfatiza McGrath.[14]
A Lei de Deus continua sendo o princípio norteador de toda a vida cristã. Deus continua ordenando que nós não adulteremos, não roubemos, não matemos, que honremos os nossos pais, que o adoremos com exclusividade. Por isso, somente na Palavra temos o caminho de vida seguro que nos conduz à satisfação de Deus.[15]
Na Escritura temos um diagnóstico atualizado da situação do homem e um guia prático, como escreveu Lloyd-Jones: “Não há livro mais prático do que a Bíblia. Ela é o livro que fala ao mundo como ele se encontra neste exato momento”.[16]
No ato de seguir as veredas de Deus, vamos descobrindo a sensatez e alegria da obediência: os nossos caminhos vão se aclarando: “A vereda dos justos é como a luz (rAa) (‘ôr) da aurora, que vai brilhando (rAa)[17] (‘ôr) mais e mais até ser dia perfeito” (Pv 4.18).
Assim, gradativamente, esta alegria vai se refletindo até mesmo em nosso semblante: “Quem é como o sábio? E quem sabe a interpretação das coisas? A sabedoria do homem faz reluzir o seu rosto (rAa) (‘ôr), e muda-se a dureza da sua face” (Ec 8.1).
A sabedoria bíblica consiste não no acúmulo de conhecimento, antes, em um modo de vida que reflita a sabedoria de Deus revelada em Cristo Jesus, em quem temos o modelo encarnado da plenitude de sabedoria.
Ser sábio é aplicar o conhecimento adquirido à arte de viver em comunhão com Deus refletindo isso em todas as dimensões de nossa existência. Sabedoria é a associação teórica e prática entre conhecimento e santidade que se manifesta em piedade.
A inerrante Palavra de Deus é um guia fiel e seguro para nos conduzir a Cristo e por meio dele à vida eterna.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1]J.I. Packer, “Fundamentalism” and the Word of God: Some Evangelical Principles, Grand Rapids, Mi.: Eerdamns, 1958 (Reprinted, 1988), p. 76.
[2] Vern S. Poythress, Cristianismo e Liberalismo e pressupostos hermenêuticos: In: H. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo (Edição Centenária Comentada), São Paulo: Pilgrim, 2023, [277-280], p. 278.
[3] Abraham Kuyper, A obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 113.
[4] John Piper, Lendo a Bíblia de modo sobrenatural, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2018, p. 45.
[5] Veja, 15/11/80, p. 6. Aqui Drummond, faz eco ao seu “Poema de Sete Faces”, onde ele diz: “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução….” (In: Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, 18. ed. (Organizada pelo autor), Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, p. 4). Do mesmo modo, em outro lugar, o poeta escreve: “Por que nascemos para amar, se vamos morrer? / Por que morrer se amamos? / Por que falta sentido / ao sentido de viver, amar, morrer?” (C.D. Andrade, Corpo, 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 47).
[6] “O importante princípio que devemos manter sempre vívido na mente é que a única maneira de entender a longa história da raça humana é dar-se conta de que ela é resultado da Queda. Essa é a única chave da história, de qualquer espécie de história, tanto da história secular como desta história mais puramente espiritual que temos na Bíblia. Não se pode entender a história da humanidade se não se leva em conta este grande princípio. A história é o registro do conflito entre Deus e Suas forças, de um lado, e o diabo e suas forças, de outro; e o grande princípio determinante é de imensa importância, não só para entender-se a história passada, como também para entender-se o que está acontecendo no mundo hoje. É, igualmente, a única chave para compreender-se o futuro. Ao mesmo tempo, é a única maneira pela qual podemos compreender as nossas experiências pessoais” (D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 72).
[7]“Nem sempre podemos ser capazes de discernir o propósito de Deus na história, mas que esse propósito existe é um aspecto primordial de nossa fé” (A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 41
[8] D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 64.
[9] Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 46. “Quando esta temporalidade da criação [a vida aqui e agora], quando esse imediatismo de nossa natureza de criatura sufoca todo o nosso senso de eternidade e ocupa toda a nossa mente, coração e atenção tem-se, então, o secularismo. O secularismo nega o eterno e não permite a ideia de que qualquer coisa imediata tem consequências eternas” (John Sittema, Coração de Pastor, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 62-63).
[10] “A ciência é moralmente imparcial precisamente porque é moralmente cega, colocando-se a serviço do ditador que quer forçar seu governo opressivo por meio das armas de destruição em massa; e, da mesma forma, colocá-la a serviço dos que desejam curar uma humanidade destruída e enfraquecida por meio de novas drogas e procedimentos médicos. Precisamos de narrativas transcendentes para nos fornecer orientação moral, propósito social e senso de identidade pessoal. Embora a ciência possa nos fornecer conhecimento e informação, ela é impotente para conferir sabedoria e sentido” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 14. Veja-se também: Alister McGrath, A fé e os crentes, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 15ss.).
[11]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 10-11. “Os seres humanos anelam por fazer sentido das coisas – identificar padrões na rica estrutura da natureza, fornecer explicações do que ocorre ao redor deles para refletir sobre o significado da própria vida. É como se nossa “antena” intelectual estivesse sintonizada para discernir pistas sobre o propósito e o sentido ao nosso redor, pistas essas incorporadas na estrutura do mundo” (Alister E. McGrath, Ajuste fino do Universo: Em busca de Deus na Ciência e na Teologia, Viçosa, MG.: Ultimato, 2017, p. 19).
“Uma vez despertadas nossas suspeitas de que há mais na vida do que a paisagem desolada do secularismo moderno, estes sinais de transcendência ou ecos de uma voz divina não provam nada em si e por eles mesmos, mas fazem muito sentido quando vistos dentro do contexto do grande panorama cristão” (Alister McGrath, A Fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 31).
“O mundo pode parecer uma terra de sombras; todavia, Deus é luz que ilumina nosso caminho enquanto viajamos” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 15).
[12] Alister McGrath, A Fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 14-15.
[13]“Sim, diz ele: Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei como luz (rAa) (‘ôr) para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra” (Is 49.6).
[14]Alister McGrath, A Fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 22.
[15] Veja-se: R.P. Shedd, Lei, Graça e Santificação, São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 90.
[16]David M. Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 13. “Uma coisa muito maravilhosa que transparece quando você lê a Bíblia e aprende a conhecê-la inteiramente é descobrir que ela é um livro atualizado e muito contemporâneo. É um livro que fala a todas as épocas e gerações, porque a humanidade permanece a mesma em todas as suas qualidades essenciais, e Deus continua o mesmo. Assim, a mensagem de Deus para o mundo é ainda esta velha mensagem, e eu quero mostrar-lhe quão relevante ela é para o mundo de hoje” (David M. Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, p. 12). Veja-se também um desenvolvimento deste assunto em: D. Martyn Lloyd-Jones, Romanos: Exposição sobre Capítulo 12 – O comportamento cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 11-27.
[17] A grafia de “luz”, “ser luz”, “tornar-se luz” e “brilhar” é a mesma no hebraico.
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