Ouça este conteúdo
Getting your Trinity Audio player ready...
|
Os Salmos Imprecatórios X A moderna “Teologia da Vingança”
Fazendo uma análise acerca da hinologia evangélica dos últimos tempos, o pastor reformado Renato Vargens observou que muitos dos hinos cantados hoje nas igrejas tidas como “evangélicas” refletem algo mais do que um desejo sincero de adorar a Deus, na verdade há pouquíssima adoração uma vez que a pessoa de Deus é pouco referenciada em tais músicas, assim sendo, o referido pastor chama atenção para o fato de que há um certo caráter “retributivo” – para não dizer “vingativo” – em tais músicas modernas. O pastor então destaca que frases como “Agora é a sua vez de humilhar” nada mais refletem do que o desejo sincero do coração humano em se vingar de alguém que lhe fez mal.[1]
Certamente qualquer leitor cristão concordaria que não há espaço para esse tipo de pensamento vingativo nem no contexto musical e tão pouco como estilo de vida da Igreja. Contudo, aqueles que defendem tal filosofia possuem um embasamento teológico que, muitas vezes, seus críticos não conseguem refutar, e tal embasamento é o próprio hinário bíblico, mais especificamente o saltério, ou ainda, o Livro dos Salmos, os quais são para qualquer cristão tão inspirados quanto qualquer outro livro da bíblia. E dentro do saltério encontramos uma categoria de salmos conhecidos como imprecatórios; o conteúdo desses salmos, segundo os defensores dessa “Teologia da Vingança”, é a base para se defender a ruína dos inimigos do povo de Deus, e não somente do povo como um todo, mas cada indivíduo que se sentiu magoado ou ofendido por alguém, em tese poderia evocar as maldições bíblicas de tais salmos contra aqueles que lhes fizeram mal. É notório no entanto que tal pensamento bate de frente com ensinamentos claros presentes no Novo Testamento. Quando Jesus mandou amar os inimigos teria ele se esquecido desses salmos imprecatórios? Se tais salmos são tão inspirados por Deus quanto os Evangelhos e os demais livros bíblicos, por que então parecem destoar tanto do ensino neotestamentário? É para responder a tais perguntas que neste artigo trataremos acerca dos salmos imprecatórios, e se é possível relacioná-los com essa nova “Teologia da Vingança”.
I. Definindo a problemática
Antes de definir o que são as imprecações bíblicas e também a própria “Teologia da Vingança”, é necessário entendermos a razão pela qual esse tema ainda hoje desperta confusão e dúvida. Afinal, se os salmos imprecatórios estão na bíblia, seria errado utilizá- los? De fato, uma primeira análise despertaria em muitos leitores certo estranhamento. Vejamos por exemplo o Salmo 83:
Deus meu, trata-os como o acanto que rola, como a palha frente ao vento. Como fogo devorando uma floresta, e a chama abrasando as montanhas; persegue-os com a tua tempestade, aterra-os com o teu furacão. Cobre-lhes a face de vergonha, para que busquem teu nome, Iahweh! Fiquem envergonhados e perturbados para sempre, sejam confundidos e arruinados: saberão assim que só tu tens o nome de Iahweh.
Nesse salmo vemos o profundo desejo do salmista em ver a destruição dos seus inimigos. Aqui há um clamor ao Senhor para que a destruição e a morte caiam com violência sobre aqueles que fizeram o mal. Então temos um texto bíblico que conclama à vingança, então por que não seria correto desenvolver uma “teologia retributiva”? De fato há embasamento bíblico para as imprecações, ou seja, as maldições lançadas contra os ímpios, e é exatamente isso que gera o problema aqui apresentado: se a Bíblia defende a vingança contra os inimigos, por que o tom do Novo Testamento parece “descer” tanto quando enfatiza o amor e o perdão ao invés da justa retribuição? Teria então o marcionismo [2] razão ao afirmar uma dicotomia entre os “deuses” do Antigo Testamento e do Novo Testamento, sendo o primeiro cruel e vingativo, enquanto o segundo era o Deus de amor e salvação?
Certamente não se pode sustentar tal ideia, uma vez que o Novo Testamento também possui um caráter imprecatório. Vemos por exemplo o famoso discurso de Jesus contra os fariseus em Mateus 23:13-32; através da fórmula “Ai de vós”, o Senhor Jesus profere maldições e condenações contra os fariseus e escribas, os mestres da Lei que estavam eles mesmos pervertendo a Lei de Deus.
Em Atos dos Apóstolos, vemos um breve embate entre o apóstolo Pedro e Simão, o Mago, o qual desejou comprar o dom de Deus manifestado através dos apóstolos, ao que Pedro lhe respondeu com uma imprecação: “Pereça o teu dinheiro, e tu com ele, porque julgaste poder comprar com dinheiro o dom de Deus!” (At 8:20). A maldição de Pedro foi tão drástica que despertou em Simão um medo real de que algo ruim lhe acontecesse, o que o levou à suplicar a Pedro que intercedesse por ele a fim de que nenhuma mal lhe sobreviesse: “Rogai vós por mim ao Senhor, para que não me sobrevenha nada do que acabais de dizer.” (At 8:24).
Vários outros exemplos ainda poderiam ser dados, como Paulo quando amaldiçoou Alexandre e Himeneu (I Tm 1:20; II Tm 4:14), ou ainda os santos mortos durante perseguições neste mundo que, mesmo perfeitamente puros clamam por vingança à Deus contra seus executores (Ap 6:9-11). É inegável portanto que tais imprecações façam parte do Novo Testamento; mas longe de resolver o problema tais evidências o agravam ainda mais, pois se até Jesus e os apóstolos, e até mesmo os santos que já estão com Deus se valem de imprecações, por que afinal seria um equívoco a Igreja de hoje usar essas maldições a fim de destruir seus adversários?
O que podemos compreender até aqui é que existem maldições na Bíblia, e estas são utilizadas tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Mas o que talvez nos ajude a resolver a presente problemática é a natureza tanto das imprecações quanto da “Teologia da Vingança”. Se ambas forem coisas distintas então podemos de fato enaltecer uma como sendo divinamente inspirada, enquanto descartamos a outra por ser um mero fruto da natureza humana.
Nosso objetivo a partir de agora será então definir o que são os Salmos Imprecatórios e sua função no Antigo Testamento, onde estão inseridos originalmente. Depois é válido observarmos como as imprecações são usadas no Novo Testamento e consequentemente na vida da Igreja, e por fim iremos compreender o que de fato é a “Teologia da Vingança” e se esta de fato tem alguma relação com os Salmos Imprecatórios.
II. O que são imprecações
II. 1. Imprecações no Antigo Testamento
Mesmo o Antigo Testamento, a despeito de sua relevância teológica para o cristianismo e o próprio judaísmo, está inserido no contexto maior da cultura do Antigo Oriente Próximo onde maldições e bênçãos eram comuns na vida diária de muitas sociedades. Vários documentos egípcios traziam as famosas execrações, que nada mais eram do que fórmulas de maldição contra faltosos, adversários e até demônios. No Código de Hamurabi (aproximadamente escrito entre 1792 – 1750 a.C) vemos um exemplo clássico de imprecação mesclada com um código de lei: “Que o deus Nergal… faça com que ele seja espancado com sua poderosa arma e quebre seus membros como os de uma figura de barro”.[3]
Era comum no Antigo Oriente haver esse tipo de imprecação onde se rogava aos deuses para que punissem com severas maldições àqueles que descumprissem as leis estabelecidas.
Vemos no Antigo Testamento um fato similar; no livro de Deuteronômio, a aliança com Iahweh é estabelecida em termos de bênçãos e maldições. Vejamos as bênçãos em primeiro lugar:
Portanto, se obedeceres de fato à voz de Iahweh teu Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus mandamentos que eu hoje te ordeno (…) Estas bênçãos virão sobre ti e te atingirão, se obedeceres à voz de Iahweh teu Deus: Serás bendito na cidade e bendito nos campos. Será bendito o fruto de tuas entranhas, o fruto de teu solo, o fruto de teu gado, as crias de tuas vacas e de tuas ovelhas; benditas serão a tua cesta e a tua amassadeira. Serás bendito quando entrares e bendito quando saíres. O Senhor expulsará diante de ti todos os inimigos que te atacarem. Se vierem por um caminho contra ti, fugirão por sete caminhos diante de ti. O Senhor mandará que a bênção esteja contigo, em teus celeiros e em todas as tuas obras, e te abençoará na terra que te há de dar o Senhor, teu Deus. (Deuteronômio 28:1-8).
De modo semelhante, a desobediência acarretaria uma série de maldições da parte de Deus, algumas das quais também encontramos no livro de Deuteronômio:
Todavia, se não obedeceres à voz de Iahweh teu Deus (…) todas estas maldições virão sobre ti e te alcançarão: serás maldito na cidade e maldito nos campos. Serão malditas tua cesta e tua amassadeira; será maldito o fruto de tuas entranhas, o fruto do teu solo, as crias de tuas vacas e de tuas ovelhas. Serás maldito quando entrares e maldito serás quando saíres. O Senhor mandará contra ti a maldição, o pânico e a ameaça em todas as tuas empresas, até que sejas destruído e aniquilado sem demora, por causa da perversidade, de tuas ações e por me teres abandonado. O Senhor mandar-te-á a peste, até que ela te tenha apagado da terra em que vais entrar para possuí-la. O Senhor te ferirá de fraqueza, febre e inflamação, febre ardente e secura, carbúnculo e mangra, flagelos que te perseguirão até que pereças. O céu que está por cima da tua cabeça será de bronze, e o solo será de ferro sob os teus pés. Em lugar da chuva, necessária à tua terra, o Senhor dar-te-á pó e areia, que cairão do céu sobre ti até que pereças. (Deuteronômio 28:15-28).
Essa fórmula “benção/maldição” vai estar presente em todo o Antigo Testamento. O que ressaltamos aqui é o caráter condicional para que venham ou a benção ou maldição, que nada mais seria do que a obediência. Tanto no mundo politeísta quanto no Israel monoteísta encontramos o conceito da “justiça retributiva”, ou seja, aquele que fizer o bem é digno de benção, enquanto o que fizer o mal é digno de maldição; este é o princípio encontrado na lei de Talião, o qual também está presente na Lei Mosaica: “Mas, se houver outros danos, urge dar vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.” (Ex 21:23-25).
Além dessa justa retribuição, ainda há o desejo de que o castigo dos inimigos seja a derrota diante do Deus de Israel, tal como vemos em passagens como Números 10:35 na petição de Moisés; o “Cântico de Débora” conclui com uma imprecação ao pedir que os inimigos de Deus pereçam (Jz 5:31); o profeta Jeremias se vale por diversas vezes de imprecações contra seus inimigos (Cf. Jr 11:20; 15:15; 17:18; 18:21-23; 20:12). Em cada uma dessas imprecações encontramos o mesmo núcleo, a saber, que a justa retribuição caia sobre os maus.
Não é estranho então encontrarmos uma verdadeira “coletânea” de imprecações no livro dos Salmos, uma vez que estas estavam amplamente inseridas em toda a cultura do Antigo Oriente assim como do próprio Israel.
II. 2. Alguns exemplos
John N. Day (2002:16) usa como exemplo três salmos cujas imprecações são bem específicas: o salmo 58, que é uma imprecação contra um inimigo da sociedade; o salmo 137 que se consistiria numa imprecação contra um inimigo nacional ou comunitário; e por fim a imprecação do salmo 109 se tratando da condenação de um inimigo pessoal. Começando pelo Salmo 58, Day faz algumas colocações válidas para a discussão do tema das imprecações nos salmos:
Será que realmente fazeis justiça, ó poderosos do mundo? Será que julgais pelo direito, ó filhos dos homens? Não, pois em vossos corações cometeis iniquidades, e vossas mãos distribuem injustiças sobre a terra. Desde o seio materno se extraviaram os ímpios, desde o seu nascimento se desgarraram os mentirosos. Semelhante ao das serpentes é o seu veneno, ao veneno da víbora surda que fecha os ouvidos para não ouvir a voz dos fascinadores, do mágico que enfeitiça habilmente. Ó Deus, quebrai-lhes os dentes na própria boca; parti as presas dos leões, ó Senhor. Que eles se dissipem como as águas que correm, e fiquem suas flechas despontadas. Passem como o caracol que deslizando se consome, sejam como o feto abortivo que não verá o sol. Antes que os espinhos cheguem a aquecer vossas panelas, que o turbilhão os arrebate enquanto estão ainda verdes. O justo terá a alegria de ver o castigo dos ímpios, e lavará os pés no sangue deles. E os homens dirão: Sim, há recompensa para o justo; sim, há um Deus para julgar a terra.
Para Day esse salmo faz um contraste entre a justiça do homem e a justiça divina, pois é com Deus que está a verdade, ou melhor “há um Deus que faz justiça na terra” (v.11). E como há uma iniquidade crescente no mundo, deve haver um princípio de retribuição para erradicar o mal, e o salmista clama a Deus que se vingue contra essa injustiça. Agora se voltando para o inimigo nacional, o Salmo 137 se apresenta da seguinte forma:
Às margens dos rios de Babilônia, nos assentávamos chorando, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros daquela terra, pendurávamos, então, as nossas harpas, porque aqueles que nos tinham deportado pediam-nos um cântico. Nossos opressores exigiam de nós um hino de alegria: Cantai-nos um dos cânticos de Sião. Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor em terra estranha? Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita se paralise! Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias. Contra os filhos de Edom, lembrai-vos, Senhor, do dia da queda de Jerusalém, quando eles gritavam: Arrasai-a, arrasai-a até os seus alicerces! Ó filha de Babilônia, a devastadora, feliz aquele que te retribuir o mal que nos fizeste! Feliz aquele que se apoderar de teus filhinhos, para os esmagar contra o rochedo!
Para Erich Zenger, esse salmo pode ser entendido como “o salmo de violência por excelência” (ZENGER, 1996:46). O seu contexto se dá na retribuição à Babilônia por conta da destruição de Jerusalém e consequentemente o cativeiro de Judá na Babilônia. A imprecação contra a nação inimiga ganha seu “ápice” nos versos finais, onde além de haver o desejo de destruição contra a Babilônia e seus filhos, ainda há menção a Edom por conta de sua omissão e escárnio quando os inimigos cercaram Jerusalém.
Por fim, o Salmo 109 se constitui no caso mais complexo, e isso porque sua natureza é extremamente pessoal, o que leva a muitos cristãos observá-lo com certo receio, tendo em mente que talvez haja um conflito com o “ame seus inimigos” (Mt 5:44). Assim, conforme o Salmo 109 nos diz:
Deus de meu louvor, não fiqueis insensível, porque contra mim se abriu boca ímpia e pérfida. Falaram-me com palavras mentirosas, com discursos odiosos me envolveram; e sem motivo me atacaram. Em resposta ao meu afeto me acusaram. Eu, porém, orava. Pagaram-me o bem com o mal, e o amor com o ódio. Suscitai contra ele um ímpio, levante-se à sua direita um acusador. Quando o julgarem, saia condenado, e sem efeito o seu recurso. Sejam abreviados os seus dias, tome outro o seu encargo. Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva a sua esposa. Andem errantes e mendigos os seus filhos, expulsos de suas casas devastadas. Arrebate o credor todos os seus bens, estrangeiros pilhem o fruto de seu trabalho. Ninguém lhes tenha misericórdia, nem haja quem se condoa de seus órfãos. Exterminada seja a sua descendência, extinga-se o seu nome desde a segunda geração. Conserve o Senhor a lembrança da culpa de seus pais, jamais se apague o pecado de sua mãe. Deus os tenha sempre presentes na memória, e risque-se da terra a sua lembrança, porque jamais pensou em ter misericórdia, mas perseguiu o pobre e desvalido e teve ódio mortal ao homem de coração abatido. Amou a maldição: que ela caia sobre ele! Recusou a bênção: que ela o abandone! Seja coberto de maldição como de um manto, que ela penetre em suas entranhas como água e se infiltre em seus ossos como óleo. Seja-lhe como a veste que o cobre, como um cinto que o cinja para sempre. Esta, a paga do Senhor àqueles que me acusam e que só dizem mal de mim. Mas vós, Senhor Deus, tratai-me segundo a honra de vosso nome. Salvai-me em nome de vossa benigna misericórdia, porque sou pobre e miserável; trago, dentro de mim, um coração ferido. Vou- me extinguindo como a sombra da tarde que declina, sou levado para longe como o gafanhoto. Vacilam-me os joelhos à força de jejuar, e meu corpo se definha de magreza. Fizeram-me objeto de escárnio, abanam a cabeça ao me ver. Ajudai-me, Senhor, meu Deus. Salvai-me segundo a vossa misericórdia. Que reconheçam aqui a vossa mão, e saibam que fostes vós que assim fizestes. Enquanto amaldiçoam, abençoai-me. Sejam confundidos os que se insurgem contra mim, e que vosso servo seja cumulado de alegria. Cubram-se de ignomínia meus detratores, e envolvam-se de vergonha como de um manto. Celebrarei altamente o Senhor, e o louvarei em meio à multidão, porque ele se pôs à direita do pobre, para o salvar dos que o condenam.
É notória a pessoalidade presente neste salmo, aqui o salmista está clamando a Deus por sua justiça contra um inimigo em particular que lhe difamou. Esse tipo de salmo pessoal é um dos mais utilizados como base para a “Teologia da Vingança”, é o “clamor contra aquele que me feriu de alguma forma”. João Calvino no século XVI d.C. já observava que esse salmo já era utilizado de forma abusiva a fim de se obter vingança contra alguém.[4]
Assim sendo, antes de concluirmos este artigo, devemos então apontar da questão ética presente nesta temática dos Salmos Imprecatórios, ou melhor, de toda e qualquer imprecação presente em ambos os Testamentos. Para isso defenderemos que há não só um uso, mas também uma equivocada interpretação acerca das imprecações, as quais não tem simplesmente servido de base não para uma justiça retributiva, mas sim para uma vingança pessoal, egoísta e desenfreada.
III. A ética das imprecações
III. 1. As imprecações como parte da Aliança
Vemos desde cedo no livro do Gênesis Deus se revelando aos homens, mas o que talvez seja o momento mais intenso, seja aquele onde Deus firma um pacto com Abraão, o qual viria a ser o pai da nação israelita.
A Aliança então é firmada com Abraão. E Deus de forma clara estabelece cada termo dessa Aliança, assim como suas consequências e privilégios. Chamamos aqui atenção para o seguinte trecho: “Abençoarei aqueles que te abençoarem, e amaldiçoarei aqueles que te amaldiçoarem; todas as famílias da terra serão benditas em ti.” (Gn 12:3). Era parte da Aliança Abrâmica a justa retribuição para aqueles que atentassem contra Abraão e seus descendentes; isso por si só já oferece uma justificativa para o caráter imprecatório utilizado nos salmos. Contudo, não cremos que tal explicação seja suficiente para explicar a natureza das imprecações e tão pouco justifica o seu uso nos dias de hoje, ao menos não da forma que são utilizadas.
De fato, a mentalidade dos salmistas fosse possivelmente embasada nas bênçãos e maldições que o próprio Deus prometeu enviar para os inimigos de seu povo eleito. Nesse sentido, o Pacto seria manifesto pela proteção que Deus dá ao seu povo por meio do castigo dos ímpios. No entanto aqui não vemos que a Teologia da Aliança seja necessariamente a melhor resposta para essa problemática, sendo no máximo específica para explicar a Antiga Aliança, mas não justificaria o uso dela por cristãos gentios ainda hoje. Assim sendo podemos analisar as imprecações de outra forma e vê-las como sendo apelos para a justiça de Deus, nisso as imprecações ganhariam um caráter mais profético.
III. 2. As imprecações como profecias
Com “profecias” aqui queremos dizer a declaração da voz de Deus por meio de sua palavra escrita, ou seja, a Bíblia Sagrada. E num certo sentido é correto entender os salmos como sendo instrumentos proféticos de Deus para assim falar com seu povo; ao menos assim foi entendido pelo apóstolo Pedro, quando por duas vezes atribuiu ao rei Davi o título/função de profeta (At 1:16; 4:25). Mesmo outros salmistas como Asaph, Heman e Jeduthun se valeram de “palavras proféticas” tais como “Deus disse” ou “Fala Senhor” (SIMAGO; KRUGER, 2016:587).
O caráter imprecatório então presente nesses salmos proféticos se consciste na declaração do que Deus irá fazer, ou seja, justiça contra os ímpios assim como a punição de toda e qualquer injustiça. Nesse sentido, as imprecações nada mais são do que Deus usando homens e mulheres para expressar palavras de juízo futuro contra aqueles a quem castigará.
Então uma “Teologia da Vingança”, fruto tão somente do imediato desejo revanchista, nada tem em comum com as imprecações presentes na Bíblia. Se nos voltarmos para as já referidas imprecações do Novo Testamento podemos observar que elas também mantem um caráter de juízo profético. Quando Jesus declara palavras duras contra os mestres da lei, dizendo “Ai de vós”, ele está anunciando a punição pelos seus pecados, e que sobre aquela geração presente seria cobrado o sangue de cada justo que havia perecido desde o início dos tempos (Cf. Mt 23:35-39); fato esse que cremos ter sido a destruição de Jerusalém por parte dos romanos em 70 d.C.
O próprio Paulo diz palavras duras contra os falsos mestres da Galácia, de modo que fossem amaldiçoados aqueles que pregassem um outro evangelho que não fosse o Evangelho de Jesus Cristo (Gl 1:8,9). De modo algum Paulo está se valendo de ódio e puro desejo de vingança, na verdade o apóstolo expressa a realidade que o Senhor Jesus nos fala através de João no Apocalipse, que qualquer um que acrescenta ou distorce a Palavra de Deus terá sua parte na Eternidade tirada como uma forma de juízo (Ap 22:19), o que por si só se consistiria numa maldição eterna.
Conclusão: A questão moral
Assim pontuamos que não há qualquer ligação entre a moderna Teologia da Vingança com as imprecações dos salmos e de outras partes da Bíblia. Consideramos que as imprecações, por conta de seu caráter profético, são juízos embasados na Palavra de Deus e contra aqueles que cujo castigo é inevitável. Quando a glória de Deus é maculada, as imprecações são invocadas (SIMAGO; KRUGER, 2016:588). Já a Teologia da Vingança se vale da retribuição quando a glória do homem e não a de Deus é maculada.
E como nosso último ponto, vemos que as imprecações hoje podem ser utilizadas exatamente em três padrões ou casos: 1 – sendo elas juízos já presentes na Escritura, como por exemplo anunciar a ira de Deus para aquele que rejeita Cristo como seu salvador; 2 – clamor a Deus para que defenda a sua própria Glória quando esta se encontra sob ataque; 3 – em situações pessoais confiar na justiça de Deus, sabendo que não nos cabe ficar irados, mas que tão somente a Deus pertence a vingança (Hb 10:30).
Nesse terceiro ponto ainda pode haver certa dúvida. Como então podemos recorrer às imprecações? A reposta como sempre está na própria Escritura. Devemos amar e interceder pelos nossos inimigos, mas ainda assim podemos clamar a Deus que cumpra sua Palavra e faça justiça, no entanto em nosso coração deve estar somente o desejo de que a Glória do Senhor seja vista, e nunca o desejo do sofrimento dos nossos inimigos ainda que eles mereçam.
Devemos ter em mente que até no clamor por justiça devemos tomar certo cuidado. O profeta Habacuque experimentou a corrupção do seu povo, e viu a glória de Deus sendo maculada, de modo que foi compreensível clamar ao Senhor por justiça, e Deus lhe atendeu quando lhe disse que Israel pereceria nas mãos dos babilônios, um povo então conhecido por sua crueldade; esse fato fez o profeta passar o restante de seu diálogo com Deus implorando para que tamanho castigo não mais se abatesse sobre seu povo. Isso nos ensina que até quando clamamos por justiça devemos ser cautelosos.
Um bom exemplo poderia ser o do arcanjo Miguel, que não proferiu palavras próprias contra Satanás, antes confiou que Deus agisse (Jd 1:9). Mas certamente o Senhor Jesus é quem nos dá uma excelente noção de como lidar contra aqueles que merecem toda sorte de maldições; quando na cruz, ao invés de conjurar imprecações, suas palavras para Deus Pai em relação aos seus algozes tão somente foi “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34). Que dessa mesma forma confiemos que Deus está no controle e não nos entreguemos ao desejo de vingança, antes amemos a todos expressando assim o amor de Cristo, sabendo que ao Senhor pertence a retribuição e que Ele é quem um dia “retribuirá a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam a glória, a honra e a imortalidade; mas ira e indignação aos contumazes, rebeldes à verdade e seguidores do mal.” (Rm 2:6-8).
Notas:
[3] Disponível em https://www.asor.org/anetoday/2014/12/cursing-in-the-ancient-near-east/, acessado em 14/06/2020.
[4] John Calvin. Commentary on the Book of Psalms. Trans. James Anderson, in: Calvin’s Commentaries (reprint, Grand Rapids: Baker, 1999), 4:276.
Bibliografia:
DAY, John N. The Imprecatory Psalms and Christian Ethics. Bibliotheca Sacra 159 (April-June 2002): Dallas Theological Seminary, 86 – 166.
LANEY, J. Carl. A Fresh Look at the Imprecatory Psalms. Bibliotheca Sacra 138 (1981): Dallas Theological Seminary, 35 – 45.
SIMAGO, Daniel; KRUGER, P. Paul. A Overview of the Study of Imprecatory Psalms: Reformed and Evangelical Approaches to the Interpretation of Imprecatory Psalms. OTE 29/2 (2016): 581 – 600.
ZENGER, Erich. A God of Vengeance? Understanding the Psalms of Divine Wrath. Trans. Linda M. Maloney (Louisville: Westminster John Knox, 1996).