Artigo: Podemos acreditar no livro de Gênesis?

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Podemos acreditar no livro de Gênesis?

Depois que Charles Darwin publicou sua “A Origem das Espécies” no final do século XIX tudo levava a crer que o cristianismo desapareceria ao longo das próximas décadas; isso era cogitado devido a finalmente terem surgido provas cabais e incontestáveis de como a raça humana teria surgido, e não só ela, mas também todas as espécies que habitam o planeta. E tais descobertas pareciam excluir Deus totalmente da equação; portanto, todas as narrativas bíblicas, sobretudo as encontradas no Gênesis, seriam automaticamente mitos inventados, e com o advento do método científico não mais haveria espaço para Deus ou qualquer narrativa bíblica. Posteriormente, pesquisadores de várias áreas, fossem da biologia, arqueologia, filosofia e até psicologia, começaram a apresentar hipóteses e até dados de que várias outras coisas apresentadas nos textos sagrados eram impossíveis de terem acontecido, e assim criou-se a “ciência”, dogmática e incontestável, surge assim o abismo entre “o que científico” e “o que é da fé”, sendo o primeiro a verdade baseada em fatos comprováveis, e o segundo apenas crenças que fazem algumas pessoas se sentirem melhor, ou ainda explicam coisas que a “ciência” ainda não conseguiu explicar.


Curiosamente, o que parecia ser o enterro da fé cristã só serviu para fomentar ainda mais o debate, e mais, não faltaram estudiosos que tentaram “casar” essas novas descobertas científicas com textos bíblicos. O teólogo e escritor cristão C.S. Lewis acreditava que a evolução foi o meio pelo qual Deus criou o ser humano – algo que hoje é chamado de “evoteísmo”. Já nos anos 50 do século XX, o alemão Werner Keller pública “E a Bíblia tinha razão”, onde tenta conciliar descobertas científicas com textos da Bíblia. Keller foi quem tornou famosa a explicação da travessia do Mar Vermelho, onde segundo ele, o “milagre” nada mais foi do que um acontecimento natural, pois em certa época do ano, e em certa parte do mar, a água ficava rasa de modo que podia-se atravessar a pé (KELER, 1976:144).

O problema é que tais conciliações contradizem tanto o relato científico quanto a Bíblia, de modo que uma tentativa de “colar” o texto bíblico nos artigos dos cientistas é uma tarefa impossível. No entanto aqui apresentaremos não uma conciliação, mas sim as evidências que a própria ciência nos dá de que a bíblia não é um simples livro de mitos e fábulas, e que muito do que ali está, inclusive já possui comprovação, ainda que não seja fácil para muitos admitirem e nem divulgar. Assim sendo, iremos tratar de algumas narrativas do Gênesis, um dos livros mais atacados pelos cientistas. Então ao longo deste artigo nos debruçaremos sobre as narrativas de Adão e o Éden, o Dilúvio, a Torre de Babel, todos à luz da história e da arqueologia.

I. A Arqueologia Bíblica

Quando fala-se de “arqueologia bíblica” hoje na Academia logo se pensa em fanatismo ou “biblismo”, ou seja, tentar provar a bíblia a qualquer custo. Contudo, não são poucos os estudiosos que defenderam o estudo desse novo ramo da arqueologia nas últimas décadas, e justamente pois não há qualquer tentativa de provar a bíblia; o que na verdade é feito nada mais é do que comparar os textos bíblicos com os recentes achados arqueológicos, e ver se é possível afirmar ou não se um achado corresponde a um texto ou vice-versa.

Vamos a um rápido exemplo. Durante muito tempo negou-se a possibilidade do rei Davi e seus descendentes terem existido; os historiadores defendiam que Davi foi o típico mito do herói fundador para quem o reino de Israel, e posteriormente Judá, se dirigiam a fim de buscar sua origem comum e explicar o início da monarquia. No entanto, se por um lado não havia evidência da existência de Davi, também não haviam provas do contrário, e em arqueologia “ausência de evidência não é evidência de ausência”. Era fato que o único relato de Davi era a Bíblia, mas a situação mudaria após uma curiosa descoberta. Em 1868, em Dibã, antigo território moabita, foi encontrada uma estela, uma placa de pedra, hoje conhecida como Estela de Messa ou ainda Pedra Moabita.

 

No livro dos Reis vemos a revolta do rei Messa contra Israel, o Reino do Norte, após a morte de Acabe (2 Rs 3). O que chama a atenção é que após estudar essa pedra em 1991, o arqueólogo André Lemaire apontou uma linha do texto que passou desapercebida por quase 130 anos, o arqueólogo encontrou a expressão “Casa de Davi”, a fim de se referir aos monarcas de Judá, o Reino do sul, e descendentes portanto do rei Davi. (RICHELLE, 2017: 63,64).

Como apontamos, isso não é uma evidência cabal da existência de Davi, no entanto é um ponto perfeitamente aceitável que havia um consenso de que Judá descendia de Davi, e mais, isso é atestado pelos inimigos de Israel, então uma hipótese de um simples mito de herói fundador fica cada vez mais fraca. Certamente o próprio conceito de “evidência” deve ser discutido, o que serve de evidência para um historiador e arqueólogo difere da evidência de um biólogo ou químico por exemplo. O fato é que a Arqueologia Bíblica não tenta provar a Escritura – a qual não carece de prova – antes lida com a materialidade relacionada aos textos bíblicos. Vale acrescentar ainda que nenhuma evidência arqueológica encontrada “desprovou” a Bíblia, mas muito do que foi encontrado serve para elucidar muitas das questões que o texto sagrado nos apresenta. Assim sendo passaremos a tratar um pouco mais da arqueologia bíblica, que será o método do qual nos valeremos quando formos analisar as narrativas de Gênesis ao longo deste artigo. 

 

I. 2. Conhecendo a História

A Arqueologia Bíblica ganhou seus contornos somente nas últimas décadas, sendo esta fruto não só da arqueologia, mas também das empreitadas de aventureiros no Oriente desde o século XVIII. Antes mesmo de querer provar ou não a bíblia muitos buscaram no Oriente as origens da própria Europa, podemos dizer que havia um certo ufanismo que desejava legitimar as potências europeias colocando-as como herdeiras de grandes reinos e povos do passado (DARIUS; HOSOKAWA, 2017:22). A princípio surgiu uma “assiriologia”, ou seja, o estudo da antiga Assíria, mas logo vieram “sumeriologos”, egiptólogos e outros, e assim, escavando nos tells[1], as colinas artificias feitas de ruínas de edificações sobrepostas, iniciou-se uma verdadeira empreitada arqueológica (LIMA, 2010:8).

Hoje, estudiosos assim são chamados de orientalistas, no entanto não é incorreto tratar de culturas específicas. Há aqui no Brasil hoje egiptólogos que podem ser historiadores ou arqueólogos, e que são orientalistas, pois estudam um povo do Oriente, e também egiptólogos, pois se especializaram no Egito Antigo. Assim, de igual modo, aquele que busca estudar os acontecimentos, povos e achados relacionados ao texto da Bíblia Sagrada, este é um “arqueólogo bíblico”, ou seja, a “arqueologia bíblica” nada mais é do que se especializar e conhecer a história dos relatos bíblicos, assim como seus respectivos contextos históricos. 

 

Não se trata de tentar provar a Bíblia – embora essa seja uma tentação muito forte – mas sim elucidar e compreender mais do texto sagrado através de achados da cultura material que muitas vezes sim o confirmam, outras vezes trazem mais dúvidas. A fonte escrita descordar dos achados arqueológicos não é prerrogativa da bíblia. Não possuímos por exemplo qualquer evidência arqueológica de que o relato da Guerra de Tróia, na Ilíada de Homero, é verídico. Tróia foi de fato escavada e pode-se observar evidências de sua destruição, no entanto não foi encontrada qualquer rastro físico de algum príncipe Páris que lutou com Menelau pela posse de Helena. Assim como não temos provas materiais de figuras históricas imponentes e importantes como Sócrates, Galileu e até Shakespeare. Ainda assim não negamos a historicidade dessas figuras e acontecimentos.

O ponto é que a arqueologia bíblica nem sempre irá explicar e até concordar com tudo o que a Bíblia diz, por exemplo, o Gênesis traz um anacronismo quando na história de Abraão diz que o patriarca saiu de Ur dos Caldeus, isso seria impossível pois no tempo do patriarca Abraão Ur pertencia aos Sumérios, sendo o tempo dos caldeus muito posterior. Então a bíblia estaria errada? Não exatamente, quando o Gênesis foi escrito provavelmente Ur já não estava mais com os Sumérios, então o autor usou a linguagem dos seus dias a fim de que seus leitores identificassem a cidade de onde veio o patriarca de Israel com um exemplo contemporâneo; certamente Ur existia quando Moisés escreveu o Gênesis, mas já não era a mesma Ur que Abrão deixara para trás. É uma aparente contradição, mas ainda assim um problema facilmente solucionável e que em nada interfere com a teologia bíblica, mas aqui apontamos que esse tipo de coisa irá acontecer vez ou outra; ainda assim podemos usar o estudo arqueológico a fim de desvendar o quadro maior da Bíblia. 

 

Como aponta o arqueólogo Randall Price, a arqueologia bíblica complementa o testemunho da Escritura (PRICE, 2006:35), o que não quer dizer que ela acrescenta fatos, mas sim que nos ajuda a entender o mundo onde se assentam as narrativas do texto sagrado; lembramos assim que falamos de uma documentação de 66 livros que foram escritos ao longo de quase 4.000 anos, e em culturas que não mais existem. Assim sendo, a arqueologia bíblica serve tanto para contextualizar o texto bíblico, como também expressa o anseio de diferentes confissões religiosas, sobretudo cristãos e judeus, de conhecerem o passado teológico de suas crenças e matrizes religiosas (FUNARI; RODRIGUES, 2009:100).

Feita esta explicação introdutória acerca da arqueologia bíblica, agora sim passaremos aos textos de Gênesis acerca dos quais este artigo irá tratar, e se é possível ou não trabalharmos com a materialidade e historicidade de tais narrativas.

II. Adão: Homem ou mito?

Se há uma história na Bíblia que recebeu mais críticas e que foi mais ridicularizada, esta certamente foi a de Adão e Eva. Afinal, quem em sã consciência poderia acreditar que nossos primeiros ancestrais foram um casal despido, em um jardim edílico e ainda com uma serpente falante? De fato a história parecia bastante inverossímil, no entanto, se observamos a origem adâmica do homem e a compararmos com o que foi proposto por Darwin no passado, e pelos evolucionistas até hoje, será que ficará assim tão claro que a narrativa bíblica é tão absurda assim?

II. 1. O evolucionismo

Longe de entrar num debate científico acerca da evolução, mas ainda assim pontuando certas coisas, podemos considerar alguns pontos acerca do evolucionismo, e o porquê dele ser igualmente ou mais difícil de se acreditar do que a história de Adão e Eva. O próprio Darwin admitiu os problemas com sua hipótese, e que assim como quando a gravidade e teoria heliocêntrica foram propostas, também não havia como prova-las materialmente. Nas palavras do próprio Charles Darwin: 

 

Foi assim que se chegou à teoria ondulatória da luz; e a crença no movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo foi até há muito pouco tempo sustentada quase sem o apoio de quaisquer provas diretas. Dizer que a ciência ainda não tem pistas sobre o problema maior que é a essência ou a origem da vida não é uma objecção válida (…) A crença na imutabilidade das espécies era quase inevitável enquanto se pensava que a história do mundo tinha uma curta duração; mas agora que adquirimos uma ideia acerca do lapso de tempo decorrido sentimo-nos aptos para assumir, mesmo sem provas, que os registos geológicos são tão perfeitos que, se as espécies tivessem passado por alguma modificação, já nos teriam fornecido provas claras dessa mutação (…)Ainda que eu esteja profundamente convencido da verdade das posições que expus resumidamente nesta obra, não tenho qualquer expectativa de convencer certos naturalistas muito experientes, cujas mentes estão cheias de factos que foram analisados, ao longo de muitos anos, a partir de um ponto de vista diretamente oposto ao meu. (DARWIN, 2009:413,414).


É inegável que Darwin estava convicto de suas ideias, no entanto ele admitia que não tinha provas cabais de praticamente nada do que falava, recebendo inclusive críticas de cientistas de sua época. Hoje ainda as ideias de Darwin são predominantes, ao menos é o que nos é ensinado, de que somos fruto de bilhões de anos de evolução, ainda assim Darwin é extremamente mal interpretado por muitos. Comentando acerca de sua obra, o doutor Adauto Lourenço aponta que Darwin jamais pretendeu tratar acerca da origem da vida, apenas quis demonstrar a adaptação e variação das espécies por meio da seleção natural (LOURENÇO, 2011:64). E curiosamente, o próprio Darwin não descarta a existência de Deus, fazendo por várias vezes em sua obra referências ao “Criador”.

De fato o surgimento quase que mágico da vida segundo os evolucionistas modernos viola leis da própria ciência. Afinal, se não há um Deus ou deuses, como a existência simplesmente brotaria da inexistência? Em um artigo escrito no início do século passado, quando as ideias de Darwin começaram a ser melhor difundidas, o arqueólogo e historiador Lewis Paton aponta as várias discrepâncias da narrativa bíblica, e isso porque a ciência já havia evoluído o bastante para desmenti-la e assim provar que não passa de um relato incoerente (PATON, 1915:13-17). Curiosamente essa “ciência” tão dogmática pode e é contestável, e não é uma verdade absoluta. Por exemplo, ainda quanto a evolução, como explicar a transformação de seres complexos e unicelulares em homens? Comentando acerca da genética da evolução, Adauto Lourenço ainda diz: 

 

O que não existe codificado no DNA não pode ser expresso. Note que variações e adaptações são reais e fazem parte dos processos naturais. Mas elas não são a causa. A causa das variações e adaptações é a informação genética codificada (…) Um indivíduo que recebe informação genética que produz pata não irá repassar informação genética que produz asa. Isso é um fato científico. (Idem: 65).

 
Assim sendo, os vários hominídeos encontrados não seriam uma escala evolutiva do homem começando de organismos menos complexos, mas sim animais, grandes primatas que conviveram inclusive com o ser humano, mas certamente não são seus ancestrais, uma vez que humanos sempre irão gerar humanos e macacos sempre irão gerar macacos, não importando quantos milênios decorram. 
 

II. 2. A tradição Adâmica

Como apontamos anteriormente, a narrativa de Adão é uma das mais atacadas de toda bíblia, e isso por conta de seus elementos tidos como fantásticos. Embora tenhamos acabado de ver que o evolucionismo proposto por muitos até hoje, também tenha seus requintes de fantasia e dogmatismo. Mas diferentemente desta última, a narrativa bíblica possui algo que os evolucionistas não possuem: a confirmação da mesma história em várias outras culturas, é a isso que chamamos de “tradição adâmica”.

Se observarmos certas narrativas míticas ficaremos espantados de como há semelhanças entre elas e a bíblia, sobretudo o Gênesis. Claramente os críticos da Bíblia dirão que o texto Sagrado é uma cópia de mitos pagãos, no entanto essa é uma explicação pouco convincente, pois não explica por exemplo como algo como o monoteísmo surgiria dentro de um mundo politeísta onde era apenas “copiar e colar”. Por outro lado, como diz o arqueólogo Rodrigo Silva “Não se deve esperar, contudo, que as antigas tradições regionais sejam um decalque exato da narrativa bíblica. A história nos revela que houve ondas de ‘apostasia’ em relação à teologia monoteísta que saiu do Éden.” (SILVA, 2020:47).

Olhando para o épico mesopotâmico Enuma Elish, observamos muitas coincidências acerca do relato da criação. A cosmogonia da Mesopotâmia também introduz o “caos” primordial, personificada pela deusa Tiamat, e as “águas do abismo”, personificadas pelo deus Apsu, e destes dois surgiriam os deuses e os homens [2]; há ainda nesses mitos há similaridade dos nomes dos primeiros homens criados: Adamu, Adapa, Aluim, Adumuzi, etc. Nota-se uma grafia e fonética similar ao hebraico Adam, “Adão”, e isso para não mencionar do fato de todos estariam relacionados a um paraíso que hora é chamado Edenu ou Edim, ambos significando “planura”, assim como seu equivalente hebraico Eden (Éden).

Assim como veremos com a narrativa do dilúvio, encontramos traços da mesma história em outros povos pelo mundo. Na Grécia, o mito de Pandora conta como a primeira mulher criada pelos deuses condenou a humanidade aos males mais terríveis quando abriu a “caixa” que os continha. Apesar das diferenças, notamos um conceito de “queda” e de “terra amaldiçoada”, muito similar ao de Gênesis 3.

Assim sendo, houve uma tradição comum a todos esses povos, algo puro que veio com Adão e sua família e que acabou sendo distorcido com o passar dos anos. Na verdade é possível que todas essas tradições, incluindo a hebraica, derivem de um ponto comum no passado (OGUNLANA, 2016:102), uma mesma tradição que começou com a primeira família. E são estes traços em várias culturas pelo mundo, que nos fornecem evidências de que a narrativa bíblica pode ser muito mais do que um conto de fadas, tal como dizem os evolucionistas, que ironicamente, possuem menos evidências para defender suas teses do que os religiosos defensores da “tradição adâmica”.

Agora nos voltaremos para o segundo exemplo, que apesar de ser menos problemático ainda possui certas polêmicas em sua volta. Trataremos agora do Dilúvio de Noé. 

 

III. O Dilúvio

A pouco falamos acerca da “tradição adâmica”, conceito aqui aplicado à tradição comum da humanidade que foi pervertida ao longo do tempo, dando origem ao politeísmo. Ora, se a história de Adão, Eva e a Queda encontram ecos noutras culturas, não é de se admirar que com o famoso dilúvio de Noé aconteça o mesmo.

Vários poetas gregos como Apolodoro e Ovídio escreveram acerca do Dilúvio de Deucalião. Segundo a narrativa, os deuses puniram a humanidade com um dilúvio, e pouparam somente a Deucalião e sua esposa Pirra. E como eles se salvaram? Exatamente, com um barco.

Outra narrativa curiosa é a Epopeia de Gilgamesh, onde o herói título enfrenta exatamente o mesmo problema. Os deuses cansam-se da humanidade e a dizimam com um dilúvio, mas Gilgamesh, o semideus e rei de Uruk, se salva com um barco, e juntamente com alguns animais.

Até mesmo os mitos do norte da Europa contemplam a narrativa de um dilúvio. Os nórdicos acreditavam que uma grande inundação havia coberto a terra quando o gigante Ymir foi morto pelo deus Odin e seus irmãos, e assim o sangue de Ymir inundou o planeta.

Não teríamos tempo para mencionar outras narrativas de dilúvios pelo mundo pois são diversas; chineses, hindus, filipinos, celtas e outros, têm suas próprias versões de dilúvios. E o que podemos tirar de tudo isso? Simples. Qual a possibilidade de tantos povos terem se unido a fim de contar uma mentira? Cálculos matemáticos a parte, mas a probabilidade é zero. Isso nos é útil pois não só confirma a historicidade do dilúvio, mas também bate de frente com um tabu moderno, de que tal fato aconteceu, mas foi localizado, restringindo-se apenas à Mesopotâmia, pois um dilúvio universal seria impossível. Para Lorence Collins, de fato houve um dilúvio, no entanto ele não crê que foi uma inundação global, ao invés disso Collins defende que houve uma inundação localizada, e como prova ela aponta que inundações assim aconteceram em diferentes partes do mundo antigo (COLLINS, 2009:39).

O argumento de Collins de fato procede, no entanto acaba sendo uma faca de dois gumes, pois se é geologicamente possível tais enchentes locais, e se porventura elas acontecessem ao mesmo tempo? Teríamos em tese um dilúvio universal exatamente como afirma a Bíblia Sagrada. E mais uma vez temos as várias narrativas míticas atestando ao redor do mundo que houve um dilúvio, que para tamanho alcance só poderia ser em nível global. 

 

IV. A Torre de Babel

Como nosso último ponto trataremos acerca da Torre de Babel, uma das mais curiosas narrativas do livro de Gênesis, e que inclusive está ligada ao fenômeno da variedade de línguas.

Essa narrativa também está embasada no contexto histórico da antiga Mesopotâmia e sua arquitetura religiosa. Assim sendo, Babel foi um mito ou fato? Nos deteremos à essa questão na parte final deste artigo. 

 

IV. 1. A “torre” era uma torre?

Até aqui apresentamos aquelas que talvez sejam as narrativas mais famosas – e igualmente as mais “problemáticas” – de todo o Gênesis. Com isso queremos dizer que para os céticos, desde Adão até o período de construção da “torre”, cada narrativa de Gênesis estaria apinhada de mitos e erros, no entanto, como vimos até aqui não é bem assim. Mas o episódio de Babel não seria tão problemático para alguns, aqui nos referimos especificamente a construção em si. Acerca disso diz o autor bíblico: 

 

Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras. Como os homens emigrassem para o Oriente, encontraram um vale na terra de Sennar e aí se estabeleceram. Disseram um ao outro: “Vinde! Façamos tijolos e cozamo-los ao fogo! O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa. Disseram: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra! (Gn 11: 1-4).

 

Quando empregamos a palavra “torre” para se referir à construção de Gênesis 11 certamente não pensamos no clássico modelo medieval, nem em uma torre no “estilo Rapunzel”, mas sim numa construção bem mais específica. Comentamos anteriormente que esse relato é o menos criticado pelos historiadores e céticos da bíblia, e isso porque aqui temos um exemplo de edifício bem comum na antiga Mesopotâmia, aqui nos referimos aos ziggurats [3].

O ziggurat era um templo/fortaleza, feito para ser a “morada dos deuses”, e também uma “escada” entre o mundo divino e o mundo dos homens; era construído com tijolos cozidos e de forma piramidal e dividido em níveis; os sumérios acreditavam que os deuses usavam as escadas para subirem e descerem e assim de alguma forma interagirem com os mortais (SILVA, 2020:72).

De forma mais detalhada, o historiador Ciro Cardoso descreve o ziggurat como “uma massa sólida de tijolos, sem espaços internos – a não ser canalizações para drenagem de água pluvial – no alto do qual se construía um pequeno santuário, às vezes mais de um”. (CARDOSO, 1999:88). E eram nessas construções opulentas em que as sociedades da Mesopotâmia adoravam aos seus deuses. Vemos a construção de forma mais material a partir da imagem contida na estela de Ur Nammu (c. 2060-1995 a.C):

 

Temos uma construção dividida em níveis e ainda com conotação religiosa, havendo inclusive sacerdotes cultuando aos deuses, aqui representados pelos astros. O arqueólogo Adrew George segue linha similar, e aponta que há um consenso geral de que a Torre de Babel foi de fato um ziggurat, mais próximo dos sumérios ou talvez dos babilônios (GEORGE, 2005:4).

Fica claro que a semelhança com a construção de Gênesis e os ziggurats do Oriente Antigo é quase que inquestionável, assim sendo, a “Torre de Babel” teve um motivo religioso, uma forma de ligar o céu e a terra; no entanto há outras evidências que sugerem que Babel teve pelo menos mais dois objetivos por trás de sua criação; o primeiro seria escapar de um possível segundo dilúvio, alguns tabletes mesopotâmicos encontrados nos trazem essa possibilidade ao relatar certo medo da população pós diluviana; e em segundo lugar, como o próprio texto de Gênesis aponta, havia um desejo de enaltecer àquela civilização a fim de que seu nome fosse lembrado na terra.

Em 1872 o pesquisador George Smith do Museu Britânico, descobriu um certo tablete de argila que fazia menção a um ziggurat construído por Ninrode (BOYD, 1969:29 apud SILVA, 2020:73,74). O tablete trazia a seguinte inscrição: “A edificação desta torre ofendeu todos os deuses. Numa noite, eles [deitaram abaixo] o que o homem havia construído e impediram o seu progresso. Eles [os construtores] foram espalhados e sua língua se tornou estranha.”

É curioso como esse tablete mesopotâmico descreve quase que literalmente o evento bíblico, mas claro que, ao invés de usar a linguagem monoteísta se vale do politeísmo, pois como já dissemos antes, a tradição monoteísta que começou no Éden se perverteu ao longo dos séculos. Mas ainda assim temos um evidência bastante robusta de que o relato de Gênesis 11 não é só possível, mas há uma ampla materialidade que sustenta o argumento de a Torre ou ziggurat de Babel, assim como a própria confusão de línguas, foi sim um fato verídico ocorrido na história humana.

Conclusão

Nosso objetivo com este artigo não foi tentar provar a Bíblia, pois como já falamos noutro momento, esta não necessita de provas. O que aqui buscamos foi demostrar que há sim evidências na cultural material que indicam vários acontecimentos das narrativas bíblicas. Selecionamos os acontecimentos mais criticados do Gênesis a fim de demonstrar que é possível trabalhar com o texto de forma acadêmica e religiosa, e também fornecer embasamento para a apologética cristã, isto é, a defesa da fé face aos críticos, e críticos estes que muitas vezes possuem dogmas bem mais difíceis de serem provados do que qualquer narrativa bíblica – e diga-se de passagem, até hoje não foi encontrado qualquer “elo perdido” entre o macaco e o ser humano.

Temos em mente de que a Bíblia é a inerrante Palavra de Deus para a humanidade e que toda Escritura é divinamente inspirada tal como disse o apóstolo Paulo, e por essa razão cremos que a ciência, a verdadeira ciência, jamais irá contradizer a bíblia, antes são formas distintas de se observar a mão do Criador na história. Também buscamos demonstrar o valor da arqueologia bíblica como uma importante ferramenta de estudo e até como metodologia que busca averiguar e descobrir o que tiver para ser descoberto, sabendo porém que até ela possui limitações, e nem sempre um achado será prova uma cabal.

Então nos propomos abordar um viés mais arqueológico sobre o Gênesis a fim de constatar duas coisas: 1- é possível ler este livro sem medo, há um história real ali; 2 – se tudo que está em Gênesis ocorreu, então toda a bíblia está certa, e mais, se houve uma criação, um jardim e uma Árvore da Vida, certamente haverá no futuro uma nova criação, uma cidade santa e a Árvore da Vida personificada na pessoa de nosso rei Eterno, Jesus Cristo. Então sim, podemos crer no Gênesis, assim como podemos crer em toda a Escritura.


Notas:

[1] – Em árabe “tell” pode significar monte ou ainda colinas naturais. Em arqueologia boa parte dos sítios arqueológicos são tells, montes naturais ou não onde se encontram desde casas e templos a até cidades construídas uma por cima das outras, isso porque os antigos não tinham o hábito de demolir edifícios, então aproveitavam a construção anterior ou simplesmente faziam a nova por cima.
[2] – Enuma Elish. O Épico da Criação. L.W. King (Trad.), 1902.
[3] – Toda a representatividade do ziggurat pode ser encontrada no Êxodo, quando Deus diz como construir o seu Tabernáculo. O ziggurat também era chamado de “casa de deus”, e possuía um “lugar santo” e ainda um “santo dos santos”. Lembramos aqui que os hebreus estavam familiarizados com esse tipo de termologia religiosa, o que temos então aqui é Deus falando ao ser humano em linguagem que ele entender.

Bibliografia:

Fontes Documentais

A Bíblia de Jerusalém. 8ª impressão, São Paulo: Paulus, 2002.

Enuma Elish. O Épico da criação. L.W. King (Trad.), Londres: 1902.

Fontes historiográficas

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