O cristão e o seu lugar na política

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No Brasil dos últimos anos muito se tem falado sobre “polarização” no que diz respeito ao meio político. Curiosamente o termo é usado de forma negativa para se referir as discussões políticas, quando na verdade deveria ser o contrário, pois quanto mais politizado for um país é sinal de que a democracia está funcionando, pois unidade de pensamento político é um outro nome para uma ditadura, e assim sendo devemos prezar por tal polaridade.

Mas as questões tornam-se ainda mais complexas quando procuramos entender o papel da igreja e do cristão em toda a questão. Deveria o cristão envolver-se com a política? A igreja pode ter alguma opinião quanto aos assuntos do Estado? Sendo um povo que vislumbra a Eternidade, seria certo qualquer tipo de envolvimento com o meio político, tido por muitos cristãos inclusive, como algo diabólico? Neste breve artigo discutiremos acerca de tais temas, demonstrando o que a Bíblia diz acerca de tais questões e como o cristão deve se posicionar no meio político (se é que deve).

Ironicamente, mesmo aqueles que negam a participação cristã na política opinam frequentemente acerca do assunto, seja na internet, através das mídias sociais ou mesmo em conversas privadas, e isso se dá porque qualquer pessoa sempre terá uma opinião definida sobre um tema, então, em época de eleições as discussões acerca de em quem votar sempre irão aparecer e todos acabarão por discutir isso. Durante anos o Brasil viveu uma letargia política, e a cada quatro anos todos íamos às urnas de forma quase que zumbificada votando por obrigação no “candidato menos pior”, contudo, nos últimos anos as pessoas começaram a debater, discernir, e para quem continua em letargia, esse mínimo de debate e comentários aparenta ser fanatismo, quando na verdade é o mínimo que todo cidadão consciente deveria fazer antes de ir votar. Cumprir o dever cívico engloba muito mais do que procurar o título de eleitor cinco minutos antes de sair para votar, é na verdade pesquisar seu candidato, debater com outros e assim chegar a uma melhor decisão que irá beneficiar o país e a nossa sociedade. E como cristãos até nosso dever cívico deve estar direcionado para o louvor do nosso Deus, pois como disse o apóstolo Paulo “se vocês comem, ou bebem ou fazem qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus.” (1 Co 10:31). Louvemos a Deus pela polarização! E o louvemos também por poder glorificá-lo até mesmo com nossos deveres políticos.

I. Política e politização

Mais uma vez nos remetemos a palavra “politização”, tendo em vista o quão pejorativa ela se tornou nos últimos quatro anos pelo menos; o politizar se tornou, segundo o senso comum, discutir sobre política, colocar cada esfera da realidade no aspecto político, contudo aqui cabe uma pergunta, tal politização é um exagero ou é tão somente o que sempre deveria ter sido? Creio que devemos aqui explicar o conceito de política e de politização para só então entendermos como o cristão deve se envolver ou não com tudo isso.

O filósofo grego Aristóteles dizia que que a política é feita conforme os preceitos da ética agindo assim para o bem comum da sociedade. Logo, para o filósofo, o político é uma ferramenta embasada em padrões morais pré-estabelecidos que tem como objetivo produzir o bem da comunidade. Claramente a nossa política de hoje não é literalmente a de Aristóteles, e nem a nossa ideia de democracia é a mesma surgida dentre os gregos do passado, contudo, alguns fatores irão sempre estar presentes, tais como moralidade, ética e benefícios para a sociedade; tais pontos sempre surgem em discussões políticas e principalmente em anos eleitorais. Assim, o que muitos chamam hoje de “politizar”, ou mais vulgarmente “colocar a política em tudo”, é justamente o que a política sempre foi. O historiador René Rémond discute essa questão da seguinte forma:

Certas situações ampliam o campo do político: em tempo de guerra, o que não é político? O moral do país, o abastecimento dos exércitos, a divisão da escassez, são tarefas que cabem ao poder público, pois envolvem a salvação da nação. O mesmo se dá com as crises. Outros setores, durante muito tempo mantidos longe da política, passam às vezes para a esfera do político; assim, há duas ou três décadas, viu-se na França aquilo que dizia respeito à cultura, à ciência ou à vida tornar-se objeto de decisão política, suscitar uma legislação, nutrir controvérsias políticas: a legalização da interrupção voluntária da gravidez ou os debates sobre a programação das Casas de Cultura alimentaram a crônica propriamente política. (RÉMOND, 2003: 443).

 

Rémond, ao observar o contexto social da França acaba por descrever o que vem acontecendo no mundo todo em cada campo social imaginável; o político de fato está presente em tudo, e aqui no Brasil não é diferente, vemos todo tipo de setor social presente na política, seja na liberação das drogas e a descriminalização do aborto, e até mesmo o que podemos ou não publicar nas redes sociais; nesse sentido a politização é necessária, pois não podemos simplesmente entregar nossa vida nas mãos de homens e mulheres (ainda que eleitos por nós) e deixá-los fazer o que quiserem com o poder que lhes foi conferido; é necessário debater, saber o que eu está sendo dito, a fim de que não sejamos escravizados; abusarei aqui da frase comumente atribuída a Thomas Jefferson, um dos autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos, ele dizia que “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Essa então é a razão para o país ter ficado “mais chato” nos últimos anos, as pessoas não ficaram mais politizadas a toa, apenas começaram a perceber que seus direitos mais básicos estavam sendo violados, e que a vontade da maioria não estava sendo respeitada (o que é o básico em qualquer democracia), assim sendo, não a política que dominou tudo, pois ela sempre foi tudo no que condiz ao aspecto social, o que mudou então foi que as pessoas passaram a ter mais consciência de seus deveres, e assim temeram por sua liberdade, e agora finalmente resolveram fazer algo a respeito.

Mas como a igreja de Cristo se enquadra em tudo isso? A política vista por esse aspecto soa muito secular e mundana, nada tendo a ver com a missão evangelística da igreja. Contudo, a seguir ilustraremos alguns exemplos no Antigo e no Novo Testamento dessa relação do povo de Deus com a política, e assim apreender as ideias que a própria Escritura nos traz acerca desse assunto.

II. O povo de Deus e a política no Antigo Testamento

Como podemos observar, a política está enraizada em qualquer sociedade, pois as tomadas de decisões de nossos governantes irão afetar a todos nós, e por essa razão é necessária a chamada politização e o debate. Mas curiosamente o povo de Deus do Antigo Testamento não possuía essa vantagem, a situação deles era bem mais complicada, e dela podemos tirar muitas lições do que fazer e também o que não fazer acerca da política em nossos dias.

Não pretendemos abordar exaustivamente as relações políticas entre o povo de Deus no Antigo Testamento, contudo, aqui separamos dois breves estudos de caso que nos ajudarão a entender como Deus orientou o seu povo em tais questões e aprouve ao Espírito Santo nos legar isso pela Escritura. Assim, observaremos agora o caso do profeta Daniel na Babilônia, e posteriormente o caso da rainha Ester na corte do rei Assuero, da Pérsia.

II. 1. O caso de Daniel

O livro do profeta Daniel pode ser dividido em duas partes; primeiramente os acontecimentos históricos e cronológicos que se iniciam com o Cativeiro Babilônico em 597 a.C., passando pela vivência de Daniel na corte de Nabucodonosor até o fim do Império Babilônico e sua conquista pelos persas em 539 a.C. Já a segunda parte do livro não segue uma ordem cronológica exata, sendo um compilado de visões e revelações que Deus dá ao profeta.

Nos concentraremos então na primeira parte, onde o quadro político de Israel é o pior possível. Israel do Norte já havia sido tomada pelos Assírios tempos atrás, e o Reino do Sul, Judá, permaneceu livre, isso até que o Império dos Caldeus, cuja capital Babilônia era a maior cidade, chegou a Judá e cercou e conquistou Jerusalém, levando assim os nobres e alguns outros do povo de Jerusalém cativo para a Babilônia, e nesse contexto que se enquadra o profeta Daniel, então um dos jovens cativos de Judá, e conforme lemos na Escritura:

No ano terceiro do reinado de Jeoaquim, rei de Judá, Nabucodonosor, rei da Babilônia, veio a Jerusalém e a sitiou. O Senhor entregou nas mãos dele Jeoaquim, rei de Judá, e alguns dos utensílios da Casa de Deus. Nabucodonosor levou esses utensílios para a terra de Sinar, para o templo do seu deus, e os pôs na casa do tesouro do seu deus. Depois, o rei ordenou a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, tanto da linhagem real como dos nobres” (Dn 1:1-3).

 

Não só a situação de Judá era vergonhosa, mas também a do próprio profeta Daniel, uma vez que foi retirado de sua terra, levado cativo para a Babilônia, e como foi entregue sob os cuidados do chefe dos eunucos, é de se supor que Daniel provavelmente foi castrado, perdendo assim a capacidade de gerar descendentes, o que era vergonhoso para qualquer homem naquela época. Tal ideia é reforçada quando observamos certa profecia feita por Isaías quando falava ao rei Ezequias vários anos antes do cativeiro:

 

Então Isaías disse a Ezequias: — ‘Ouça a palavra do Senhor dos Exércitos: Eis que virão dias em que tudo o que houver no seu palácio, isto é, tudo o que os seus pais ajuntaram até o dia de hoje, será levado para a Babilônia; não ficará coisa alguma, diz o Senhor. Alguns dos seus próprios filhos, gerados por você, serão levados, para que sejam eunucos no palácio do rei da Babilônia.’. (Is 39:5-7).

 

Isaías já havia profetizado que, dentre os cativos de Judá, haveriam aqueles levados para a Babilônia e assim feitos eunucos. Isso apenas reforça a humilhação de Daniel diante de um governo estrangeiro e opressor. Comentando acerca desse fato, o teólogo David Helm aponta a perda de autonomia política de Israel, e que normalmente eles já eram constantemente marginalizados pelos povos ao seu redor; e que além da perda do poder político ainda havia a questão da perda do culto a Yaweh, pois o templo fora destruído, e seus utensílios sagrados também foram levados cativos para o templo dos deuses de Nabucodonosor (HELM, 2018:21).

A narrativa de Daniel nos mostra a principio como lidar com um governo que não aprovamos, e que muitas vezes pode até mesmo nos humilhar; e o jovem profeta nos ensina a permanecer convictos em Deus, e manter nossa fé, mesmo debaixo de um julgo como o de Nabucodonosor. O “ápice” dessa ideia se dá no capítulo 2, quando Daniel irá interpretar o sonho do rei, e antes disso declara que toda a interpretação vem do seu Deus, aquele que “muda o tempo e as estações, remove reis e estabelece reis” (Dn 2: 21a). A frase em destaque é justamente o fruto da certeza de Daniel, de que o Senhor estava no controle, até mesmo do governante ímpio, pois é Deus quem coloca os governantes onde estão, e também é ele quem os tira de lá. O Senhor mesmo lembrou isso a Nabucodonosor quando este se exaltou sobremaneira, e acabou por ser retirado da vivencia dos humanos, tornou-se um louco agindo como uma animal, e assim permaneceu até que o Senhor decidisse restaurá-lo a sua sanidade e ao seu trono (cf. Dn 4: 19-37).

Aprendemos então que mesmo governos ímpios só se levantam e exercem seu domínio debaixo da permissão de Deus, de modo que ao seu povo compete se manter fiel a sua Lei e a sua Palavra, tal como Daniel, que passou por humilhações, pressões e até mesmo uma tentativa de assassinato que só não foi bem sucedida por intervenção sobrenatural. Assim nós devemos ter em mente de que Deus está no controle, e seu trono celeste continua ocupado; muitos “Nabucodonosores” ainda se levantarão, assim como muitos já passaram, e tudo isso está de acordo com a vontade de Deus. Mas ainda assim alguém pode levantar uma objeção, seria licito agir para melhorar um governo ímpio? O servo de Deus deve ser totalmente passivo a decisões que podem prejudica-lo? Cremos que o nosso próximo estudo de caso pode ajudar a responder estes questionamentos.

II. 2. O Caso de Ester

A rainha Ester é uma emblemática figura do Antigo Testamento, posterior ao profeta Daniel, Ester foi escolhida para ser esposa do rei Assuero da Pérsia. Ainda assim Ester era judia, portanto, como Daniel, era uma israelita que estava debaixo de um governo estrangeiro, e sujeita as leis injustas do mesmo. Ester teve que lidar com a perseguição do seu povo por parte de seus inimigos, que através da lei secular, começaram a perseguir o povo de Deus, contudo, o livro de Ester não defende uma atitude passiva quanto as injustiças, e deste fato podemos tirar algumas lições importantes.

Primeiramente, vemos que situações em que o Estado se constitui inimigo do povo de Deus são comuns ao longo da história. Em segundo lugar, há situações em que não podemos fazer muita coisa, e devemos sempre ter em mente que Deus permanece acima de qualquer situação, no entanto, existem situações em que podemos enfrentar o poder político usando os meios legais existentes, como foi o no caso de Ester; a jovem rainha tinha diante de si uma lei que previa o extermínio de seu povo, cabia a ela fazer ou não algo. No capítulo 4 vemos a fala do primo da rainha, o judeu Mordecai, e o aviso que ele a sua prima:

Então Mordecai pediu que respondessem a Ester: “Não pense que, por estar no palácio real, você será a única, entre todos os judeus, que conseguirá escapar. Porque, se você ficar calada agora, de outro lugar virá socorro e livramento para os judeus, mas você e a casa de seu pai perecerão. Mas quem sabe se não foi para uma conjuntura como esta que você foi elevada à condição de rainha?” (Et 4:13,14).

 

O aviso de Mordecai traz duas coisas consigo: 1 – ele tinha certeza de que Deus estava no controle, e que cuidaria do seu povo, de modo que o socorro viria fosse pela ajuda de Ester ou não; 2 – a certeza da ajuda divina não excluía o posicionamento da rainha, pois se ela havia chegado àquela posição era por vontade de Deus, e por isso ela não podia ficar calada mediante uma injustiça contra o seu povo.

A pressão de Mordecai para que Ester tomasse uma atitude se dá porque muitas vezes se faz necessário agir mediante o cometimento de uma injustiça por parte do Estado. Ficar “encima do muro” quando um mal flagrante está ocorrendo não é uma atitude cristã, e além do mais, “influenciar a sociedade através dos palácios”, isto é, pelas ferramentas da política, também é um cumprimento do chamado de Cristo para sermos “sal e luz” (FERREIRA, 2016:41). Fazer a diferença neste mundo implica as vezes usar ferramentas que estão além do cotidiano da igreja; afinal é lícito ao cristão ingressar na carreira política, e assim também o é policiar e questionar seus governantes; são poucos os brasileiros hoje que sabem que podem acessar os e-mails de seus deputados e senadores e lhes cobrarem pelas promessas de campanha, infelizmente o brasileiro há muito escolheu um caminho de passividade, e agora vemos as consequências disso quando muitas ideologias nefastas se espalham e se colocam contra tudo aquilo que acreditamos, e isso porque alguém lá atrás decidiu “ficar encima do muro” ou simplesmente não fazer nada.

Não são poucos os crentes que secularizam em demasiado o meio político, de modo que por estarem com olhos tão fitos na Eternidade acabam se esquecendo de que ainda não vivem na Eternidade, e esse é um extremo perigoso; pois se esquecer da vinda de Cristo e da Era vindoura é um erro para qualquer cristão, mas agir como se já estivéssemos no céu é igualmente ruim. Cristo já reina, mas seu reino eterno e incorruptível ainda não chegou. Isso é o que na teologia chamamos de “já e ainda não”, já possuímos realidades espirituais hoje, mas que ainda não alcançaram a sua plenitude. Assim, já devemos ansiar e aguardar a Eternidade, vislumbrá-la, mas devemos saber que ainda não chegamos na sua plenitude. Haverá um dia em que não nos preocuparemos com quem estará em Brasília, no Palácio do Planalto, pois o Rei dos Reis estará visivelmente em seu trono eterno, mas esse dia ainda não é hoje; hoje devemos olhar para nossa sociedade e avaliar o que podemos fazer a luz da Escritura, a fim de que tenhamos uma vida tranquila até que Cristo venha.

Assim a atitude de Ester, que escolheu seguir o conselho de seu primo e agiu, também pode ser a nossa, mas diferente dela não precisamos de nenhum plano engenhoso, tão somente devemos eleger candidatos que estejam de acordo com princípios éticos corretos e que garantam o bem comum de cada cidadão do país; é uma tarefa difícil, mas fazer a diferença e levar os valores do reino a este mundo nunca foi uma tarefa fácil.

A seguir então observaremos como o Novo Testamento lidou com as questões políticas e consequentemente, como nós cristão também devemos lidar com elas hoje.

III. O povo de Deus e a política no Novo Testamento

Durante a época da Reforma Protestante surgiram grupos denominados de anabatistas, e dentre eles surgiu uma repulsa pela aproximação da igreja com a política em qualquer instância. Tal pensamento proliferou no moderno movimento pentecostal, e apesar de muitos de seus ministros serem envolvidos com cargos públicos, o evangélico médio do Brasil de hoje ainda possui certos traços de demonização dessa aproximação do cristão com a política.

No entanto o Novo Testamento não prevê tal demonização, e ainda que ao longo da história da igreja muitos erros tenham sido cometidos, isso não significa que a política deva ser marginalizada, de modo que o cristão deve ter consciência e até, se assim o desejar, servir a Deus numa posição política. Mas como o Novo Testamento de Jesus Cristo trata acerca destas questões? Primeiramente vejamos as palavras do Senhor Jesus:

Então os fariseus se retiraram e consultaram entre si como surpreenderiam Jesus em alguma palavra. E enviaram-lhe discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizer: — Mestre, sabemos que o senhor é verdadeiro e que ensina o caminho de Deus de acordo com a verdade, sem se importar com a opinião dos outros, porque não olha para a aparência das pessoas. Assim sendo, diga-nos o que o senhor acha: é lícito pagar imposto a César ou não? Mas Jesus, percebendo a maldade deles, respondeu: — Hipócritas, por que vocês estão me pondo à prova? Mostrem-me a moeda do imposto. Trouxeram-lhe um denário. E Jesus lhes perguntou: — De quem é esta figura e esta inscrição? Eles responderam: — De César. Então Jesus lhes disse: — Deem, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. (Mt 22:15-21).

 

Esse texto é bastante conhecido, tanto que até se tornou um adágio popular: “dai a César o que é de César”. Mas o que Cristo quis nos ensinar? Está claro que Jesus não pretendia fazer um discurso político, mas até mesmo ele foi inegavelmente envolvido numa situação sócio política, a saber se o Israel de Deus, dominado por uma nação estrangeira e pagã, deveria pagar tributos ao imperador. Aqui destacamos que a tributação romana sobre a Judeia era pesada, pois além dos tributos comuns, os judeus ainda pagavam para não terem que prestar culto ao imperador – o que era um símbolo de sujeição a Roma. Assim, pagando para não ter que adorar imperador, os judeus de mesmo modo se submetiam ao poder romano, em suma, os impostos a César, apesar de não se constituírem como adoração, expressavam total submissão ao julgo romano. A armadilha que os fariseus armaram tinha um fundo teológico até coerente: como o povo eleito deveria se sujeitar a uma nação ímpia daquela forma? É lícito, ou melhor, Deus aprovaria tal sujeição do seu povo?

A resposta de Jesus foi clara e direta: “sim, paguem o imposto devido”. Com isso Cristo não legitimava o caráter pagão e dúbio dos romanos, mas ele pensava em algo que o apóstolo Paulo irá explicar de forma mais direta, e que o próprio profeta Daniel já havia dito séculos antes: é Deus quem levanta os reinos e os depõe, logo, não há autoridade que não provenha de Deus, por isso devemos pagar impostos.

Nesse texto Jesus também faz uma separação entre as “coisas de Deus” e as “coisas de César” – deve haver uma separação entre a igreja e o Estado, contudo, o cristão pode participar da esfera política, pois toda autoridade procede de Deus, ainda assim deve haver o cuidado de lembrarmos que vivemos “lá e cá”, devemos ser sal e luz e fazer a diferença neste mundo, e ao mesmo devemos nos lembrar que o nosso Rei e o seu Reino não são deste mundo.

E por fim temos o apóstolo Paulo com seu tão famoso texto na epístola aos romanos:

Que todos estejam sujeitos às autoridades superiores. Porque não há autoridade que não proceda de Deus, e as autoridades que existem foram por ele instituídas. Assim, aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus, e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Você quer viver sem medo da autoridade? Faça o bem e você terá louvor dela, pois a autoridade é ministro de Deus para o seu bem. Mas, se você fizer o mal, então tenha medo, porque não é sem motivo que a autoridade traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar quem pratica o mal. Portanto, é necessário que vocês se sujeitem à autoridade, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. (Rm 13:1-5).

 

Paulo aqui é tão claro quanto Jesus, devemos nos sujeitar aos poderes estabelecidos porque “não há autoridade que não proceda de Deus”, note mais uma vez o que eco das palavras de Daniel, onde Deus “remove reis e estabelece reis” (Dn 2: 21a). Comentando acerca desse texto, o teólogo Karl Barth escreveu o seguinte:

Aquele de quem procede todo poder e por meio de quem toda autoridade existente é estabelecida é Deus, o Senhor, o Deus desconhecido e abscôndito, o Criador e o Redentor, o Deus que elege e rejeita. Isso significa dizer que os poderes constituídos são medidos tendo Deus por referência, assim como são todas as coisas humanas, temporais e concretas. Deus é o seu princípio e o seu fim, sua justificação e sua condenação, seu “Sim e seu “Não”. (BARTH, 1968:484).

 

É claro então que Deus é quem estabelece todo o conceito de autoridade, pois afinal Ele é o Rei Eterno, logo, toda e qualquer noção de governo pode e deve proceder Dele, contudo, isso não quer dizer que Deus aprove todo e qualquer governante em tudo que ele ou ela fizer. Certamente não podemos dizer que a devassidão de Nero e as perseguições aos cristãos por parte de Diocleciano davam prazer a Deus, e tão pouco que governos de cunho nazifascista ou comunista estão seguindo a lei santa de Deus. Não nos esqueçamos de que Paulo, logo após dizer que toda autoridade e governo procedem de Deus, explica melhor o que é um governo legitimo: “Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Você quer viver sem medo da autoridade? Faça o bem e você terá louvor dela, pois a autoridade é ministro de Deus para o seu bem” (Rm 13:3,4). A autoridade torna-se legítima quando cumpre o seu papel de punir o mal e prestigiar o bem, quando pune os criminosos e cumpre as leis (FERREIRA, 2016:78).

Está claro então que Deus permite todas as coisas, até os nossos governantes, sejam eles bons ou maus, contudo, um governo só se constitui legítimo se ele se firma na justiça, e quando um governo ou governante desejam nos forçar a fazer algo contra o que diz a Escritura, ele pode e deve ser desobedecido, pois afinal “É mais importante obedecer a Deus do que aos homens.” (At 5:29).

IV. Princípios par o voto cristão

Acreditamos que está claro até aqui o quão é importante nos lembrarmos que a soberania de Deus atua sobre cada esfera da existência, até mesmo a do político, contudo, isso não exclui a responsabilidade humana, de modo que devemos ter consciência na hora de elegermos nossos governantes. Afinal, estes tais são nossos “servos”, eleitos/contratados para fazer a vontade da maioria (KUYPER, 2019:93).

Infelizmente o voto consciente é nublado na mente de muitos cristãos porque ainda há uma série de equívocos acerca das relações entre política e a igreja[1]; equívocos estes que foram brilhantemente listados pelo teólogo Wayne Grudem [2]em sua obra “Política segundo a Bíblia. Princípios que todo cristão deve conhecer”. Grudem lista cinco erros comuns ao cristão moderno que o fazem votar pessimamente.

O primeiro erro consiste em achar que o Estado deve impor a religião. Não são poucos os crentes que creem nisso; o Estado é laico, ou seja, não professa uma religião, logo não pode impor ou beneficiar uma religião em particular. Lembramos que o próprio Jesus havia dito que o seu Reino não era deste mundo (Jo 18:36), logo não podemos usar o poder da lei para impor o Evangelho.

O segundo erro é o oposto, ou o outro extremo, e diz que o governo deve excluir a religião. Por exemplo, ainda que uma lei seja aprovada por motivos religiosos, e com amplo apoio de uma “bancada cristã” no Congresso, o conteúdo da lei em si não se caracteriza necessariamente como imposição religiosa; por exemplo, roubar é pecado, mas também é um crime punível em nossa legislação, e creio que ninguém, por mais anticristão que seja, gostaria de ter sua casa invadida e saqueada. A igreja pode e deve aconselhar governantes, como já o fez em vários momentos na história bíblica (cf. Dn 4:27/ Lc 3:19/ At 24:25). Aconselhar e não impor, o que também pode servir de encorajamento a todo cristão que deseja seguir carreira política; este deve respeitar a Constituição, não impor a sua fé, mas também não a obscurecer.

O terceiro equívoco apontado por Grudem é a demonização de todo governo. Bem já vimos que isso não é verdade, pois todo governo vem de Deus (Rm 13: 1,2), e estes são usados para “punir os praticantes do mal e honrar os que fazem o bem” (I Pe 2:14).

O quarto erro é a velha frase “A igreja deve se dedicar ao evangelismo, e não a política”. Como já havíamos apontado aqui, não devemos achar que já vivemos na Eternidade, de modo que ainda carecemos de “coisas momentâneas”; Jesus, enquanto ministrava na Terra, não apenas pregou verdades eternas, mas também curou enfermos, ou seja, atendeu necessidades momentâneas, logo é correto dizer que Deus se interessa pelo aqui e a agora; assim sendo, uma coisa não exclui a outra, devemos vislumbrar a Eternidade, porque somos eternos, mas ainda não chegamos lá, por isso, seguindo os preceitos de Deus, podemos influenciar esse mundo, seja pela pregação do evangelho ou pelo nosso voto consciente guiado por Deus.

O quinto e último erro apontado por Grudem é o outro extremo, de que a igreja deve se dedicar a política mais do que ao evangelismo. Se o cristão começar a achar que apenas boas leis irão resolver todos os problemas ele estará se enganando, porque boas leis em si não anulam o pecado, somente a ação do Espírito Santo o faz, e isso só acontece pela pregação do Evangelho.

Conclusão

Aqui tivemos por objetivo ressaltar duas coisas: 1- Deus é o verdadeiro e derradeiro governante e nada escapa a sua soberania; 2 – devemos como cristãos ter em mente de que ainda estamos neste mundo, ainda devemos ser sal e luz e por isso temos que compreender como funciona a política e agir para que nossos governantes hajam de forma digna, aconselhando-os e intercedendo por eles, para que assim nós também tenhamos uma vida pacífica (I Tm 2: 1,2).

E por fim há algumas orientações que podemos fornecer a fim de que o cristão tenha um voto consciente e que glorifique a Deus. Primeiramente, conheça bem o seu candidato, estude sua vida pregressa e suas propostas. Lute contra a corrupção, não eleja candidatos que foram comprovadamente indiciados e até condenados por corrupção. Apoie candidatos que defendam a vida e a integridade humana. Rejeite os autoritários ou que apoiam ditaduras em outros países. E por fim, apoie candidatos cujas propostas estejam amparadas na Escritura, lembrando que se apoiamos o mal, ainda que não o cometamos diretamente, somos igualmente culpáveis (Rm 1:32).

 

BIBLIOGRAFIA

Documentação

A Bíblia Sagrada. São Paulo: Nova Almeida Atualizada, SBB, 2018.

Referências Bibliográficas

BARTH, Karl. The Epistle to the Romans. London: Oxford University, 1968.

FERREIRA, Franklin. Contra a Idolatria do Estado. O papel do cristão na política. São Paulo: Vida Nova, 2016.

GRUDEM, Wayne. Política segundo a Bíblia. Princípios que todo cristão deve conhecer. São Paulo: Vida Nova, 2014.

KUYPER, Abraham. Calvinismo. Rio de Janeiro: Cultura Cristã, 2 ed, 2019.

HELM, David. Daniel para você. São Paulo: Vida Nova, 2018.

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

[1] Note o leitor que ao longo de nossas argumentações tomamos o cuidado de se falar apenas das relações da igreja com a política, e não da igreja com o Estado. Estado e política não são sinônimos, sendo o primeiro um produto final da esfera política; neste artigo estimulamos o cristão a debater acerca da política estatal, e não unir igreja e Estado como se só fossem uma só coisa.

[2] GRUDEM, Wayne. Política segundo a Bíblia. Princípios que todo cristão deve conhecer. São Paulo: Vida Nova, 2014.